São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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terra preta

SÉRGIO DÁVILA

Casada, a porta-voz de Cafundó (todos a indicam para gente de fora que começa a fazer muita pergunta) tem três irmãos, três filhas e sete netos. Todos moram lá. Negra corpulenta, usa um relógio masculino.
Já trabalhou como empregada. Hoje, coordena as atividades em Cafundó, principalmente no barracão de reuniões que fica ao lado de sua casa. E cuida das festas religiosas.
"O povo só queria dormir"
A religião é o que divide as duas facções de Cafundó. Os Pires, protestantes, não falam mais a "cupópia", não dão entrevistas, trabalham na cidade e negam seus antepassados. Usam Cafundó apenas para morar.
Os Almeida Caetano, dos quais dona Cida é expoente, são mais receptivos e gostam de assumir sua "negritude". Consideram-se católicos, mas praticam a umbanda e o candomblé sem problemas.
"A gente aceita tudo, né?", diz dona Cida, para em seguida contar uma história, reproduzida também na tese "Um Estudo Sociolinguístico da Comunidade Negra de Cafundó", de Sílvio Vieira de Andrade Filho.
Há alguns anos, Otávio Caetano, líder que antecedeu dona Cida, já morto, levou para Cafundó um sujeito de apelido Pernambuco. O novo habitante havia curado uma doença do "padrinho Otávio", como era conhecido, e ganhou o status de curandeiro. Passou a dar consultas informais a toda a comunidade.
Dois anos depois, por intrigas de terra, Pernambuco foi convidado a se retirar de Cafundó. "A partir daí, toda a gente começou a sentir sono", lembra dona Cida. "O povo só queria saber de dormir".
Padrinho Otávio encontrou em sua casa duas marcas, uma vermelha e uma preta, deixadas por Pernambuco. Achou também uma lata enterrada. Dentro, pimenta e os nomes de todos os cafundoenses. "A pimenta é oferenda para Exu", explica dona Cida. "Os nomes são para destruir as pessoas".
A história tem final feliz. Uma curandeira de fora foi chamada e desfez o feitiço. Todos rezaram em agradecimento numa capelinha que fica logo à entrada, cujas estantes misturam estátuas de santos a copos com água, velas e plantas.
Caxapura e mafambura
As plantas são parte atuante da medicina praticada em Cafundó. Servem para as doenças classificadas como "caxapura". Estas são as curáveis por remédio.
Se os medicamentos não conseguem sucesso, porém, o caso passa a ser "mafambura, ou doença causada por feitiçaria.
No dia que deu a entrevista, dona Cida levava ramos de arruda atrás das orelhas. "É para sarar uma mafambura que me puseram e que deu dor de cabeça", revelou. Funcionou.
"Agora, quando a pessoa fica doente mesmo, completa", "acaba morrendo, porque a gente tem que andar seis quilômetros para ligar para a ambulância.
Um irmão e uma sobrinha dela morreram, consequência de um ataque epiléptico (a incidência de epilepsia é grande na comunidade). Dona Cida explica: "O doutor demorou a chegar, os dois não aguentaram, o nervo deles estourou".
Misturou tudo
Dona Cida garante que atualmente os brancos são até aceitos em Cafundó. "Mas a gente prefere nós aqui e eles lá", define. "Os brancos inventaram o escravo. Meu trisavô Congo foi comprado, eles compravam preto naquela época que nem se compra gado hoje, sabe?".
Segundo ela, a miscigenação é recente. "Antes só tinha preto aqui. Hoje tem mulato, loiro, zóio verde, zóio azul, até bem pretinho. Misturou tudo, mas não tem problema".
Não há crimes em Cafundó. "Só tem assassinato de vez em quando, mas é gente de fora que vem matar para pegar as terras", diz. Dona Cida afirma que, de vez em quando, aparecem policiais por lá. "O povo gosta de falar que em Cafundó não vai nem polícia, mas é complexo deles".
"Sol que está indo"
Das 20 casas de Cafundó, seis têm televisão. Logo que chegou a eletricidade, a líder ganhou uma. Recentemente, acabou doando o seu aparelho à filha mais velha. "Dá vergonha de ver junto com genro, netos, porque aparece coisa muito forte".
O cinema também bateu na porta da comunidade. Em 1987, um filme de média-metragem foi rodado lá, pelo diretor Joel Iamaji. Dona Cida nunca assistiu à obra. Sua lembrança é matemática: "Desde que o japonês fez o filme, dez pessoas morreram".
Agora, o que mais preocupa a líder de Cafundó é tentar conseguir que um professor vá dar aula de português de graça para as crianças. "Não é porque eu não sei ler nem escrever que os mais novos também têm que não saber", diz.
Ela não abre mão da "cupópia", porém. "A gente faz roda para ensinar as crianças a falar e para contar a história dos antepassados, orgulha-se. "Mas elas perguntam muito e às vezes dá uma preguiça..."
No seu jeito simples, é a senha para dizer que ela não quer mais dar entrevista. Já é hora do "sol que está indo" (tarde). Além desta, há outras duas divisões de tempo para a "cupópia: "O sol que está vindo" (manhã) e "o sol que já foi" (noite).
Nesse momento, passa o irmão de dona Cida, Juvenil Norberto. Pede aos estranhos R$ 1,50 "para inteirar o almoço. Dona Cida reprova. Juvenil sai com o dinheiro em direção a um casebre, de onde vem uma música. "É a casa da pinga", diz ela.
Então, de dentro de sua casa aparece um de seus netos. Traz nas mãos um game portátil, barulhento. Dona Cida olha feio. Vira-se e diz: "Ele ganhou de uns paulistas." E entra.

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