São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 1995
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O que d. Ruth vem fazer no Acre?

JORGE VIANA

A antropóloga Ruth Cardoso, esposa do presidente da República, visita hoje o Estado do Acre. Interessante novidade. Que eu me lembre, a única primeira-dama que visitou o Acre até hoje foi Danielle Mitterrand. Aliás, nossa lista de visitantes ilustres é bem extensa.
Al Gore, vice-presidente dos EUA, e outros políticos, artistas e ecologistas do mundo inteiro têm vindo conhecer a terra de Chico Mendes. E d. Ruth, o que estará vindo fazer? Imagina-se o trivial: fotografias, jantares e solenidades. Não é esse o Brasil que conhecemos?
No entanto, não será assim. A presidente do programa Comunidade Solidária, no Acre, vai se encontrar com ONGs e representações de seringueiros e índios. Vai conversar com um povo sábio e trabalhador. E vai conhecer as alternativas que temos criado com o nosso trabalho.
Verá a merenda escolar regionalizada fortalecendo a agricultura e trazendo as crianças de volta à escola. Verá a redução da mortalidade infantil com o trabalho dos agentes comunitários de saúde. Terá uma mesa farta no café da manhã com as famílias do Pólo Agroflorestal, uma experiência municipal de reforma agrária, pela qual 400 pessoas deixaram de passar fome na periferia da cidade.
Para conhecer novas experiências em desenvolvimento social, d. Ruth veio ao lugar certo. Talvez a antropologia a tenha guiado à região dos altos rios, perto das cabeceiras, onde nasce o Brasil e onde se pode aprender muito com o povo. Lula, por exemplo, tem vindo aqui desde os tempos em que Chico Mendes fazia as primeiras reuniões em Xapuri. Aliás, Lula está nos devendo uma visita. Quem sabe uma nova caravana mostre ao nosso PT como sair da ``lengalenga" ideológica em que se encontra.
Sim, temos a ousadia de apontar caminhos. Fazemos isso porque temos buscado por nossa conta as alternativas para superar a miséria que nos impuseram. Na Amazônia, região mais rica do mundo, a miséria foi fabricada pelo desmatamento, incentivos fiscais, rapinagem privada e corrupção pública.
Diziam que o extrativismo era atrasado e os grandes projetos trariam desenvolvimento. Ofereceram-nos o progresso. Éramos pobres, aceitamos. Em pouco tempo estávamos miseráveis. Há lugares em que o povo se esconde nas casas, quando chega um visitante, porque não tem roupa.
Mas continuamos trabalhando. Não aceitamos a miséria como destino. Não queremos conviver com o tráfico de meninas para a prostituição nos garimpos de Rondônia. Não nos conformamos em ver seringueiros vendendo picolé nas ruas. E fomos à luta.
A Prefeitura de Rio Branco e o mandato de Marina Silva no Senado são as expressões políticas do que conseguimos fazer. Nos alicerces, temos uma rede de ONGs, na cidade e na floresta, procurando o caminho do desenvolvimento sustentado, no qual a Amazônia possa evoluir permanecendo Amazônia.
No Brasil, pouco se sabe de nossa luta. No início, só encontramos financiamento no exterior, com temível capital estrangeiro. Aliás, quando nossos avós chegaram aqui, vindos do Nordeste, foram trazidos por companhias inglesas de navegação. Aqui na Amazônia estrangeiro mesmo é o capital nacional, que só tem coragem de aparecer escoltado por subsídios estatais.
Aos poucos, fomos realizando nossas experiências. Com a Prefeitura de Rio Branco finalmente estabelecemos parcerias com o governo federal, Basa, Sudam e a Suframa. Hoje temos um elenco de propostas a oferecer.
Por isso, quando d. Ruth Cardoso nos dá a honra de sua visita, podemos dizer, sem arrogância: o programa Comunidade Solidária pode enriquecer-se com a nossa experiência.
Pode causar surpresa essa disponibilidade, de um prefeito do PT, para colaborar com um programa do governo. É simples: não nos incomoda a solidariedade de uma parte do governo, o problema é a malvadeza da outra parte.
Todos sabemos que a política social do governo ainda é um campo aberto de indefinições. Apesar da luta heróica do Betinho, da Ação pela Cidadania e agora do Comunidade Solidária, o combate à miséria ainda não é uma decisão da nação, muito menos do governo. A falta de políticas consistentes tem sido duramente criticada, e não só pela oposição.
O que falta, mais que uma campanha ou políticas ``compensatórias", é uma decisão íntima, capaz de mudar procedimentos há muito tempo arraigados. Por exemplo: apenas 16% das receitas tributárias retornam aos municípios. Ora, não sabemos há muito tempo que descentralizar é a solução? Já foi dito e repetido: as pessoas não moram na União, mas nos municípios.
A inflação é quase zero. Parabéns! Mas, e daí? A miséria continua alta. Nas ruas do Rio e São Paulo o mercado de drogas é disputado à bala. A estabilidade monetária é um meio, não o fim, alguém ainda lembra disso?
Para nós, na Amazônia, essa miséria tem origem num modelo desequilibrado de desenvolvimento. Estamos buscando alternativas. Todas elas apontam para uma mudança no Estado brasileiro.
Queremos um novo federalismo, redefinindo funções de Estados e municípios. Queremos uma nova política de desenvolvimento regional, especialmente através do Basa, Sudam e Suframa. Queremos, da Comunidade Solidária, o que estamos tendo: solidariedade.
Estamos fazendo a nossa parte, sem ``lengalenga" ou ``nhenhenhém". Temos resultados para mostrar. E estamos contentes que d. Ruth Cardoso tenha vindo nos conhecer. Coisa que, aliás, o presidente precisa também fazer, junto com seus ministros e assessores.
Querem governar o Brasil? Então saiam de Brasília. Deixem os galhos secos do fisiologismo político e venham para as raízes sempre vivas da sociedade. Conheçam as florestas, as montanhas, rios, litoral, cerrados.
Aonde chegarem, aí estaremos, trabalhando.

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