São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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Brasil nos segue até a tumba do faraó

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 17/05/95
Por problemas de digitação, a coluna de Arnaldo Jabor, publicada à pág. 5-10 da Ilustrada de ontem saiu com uma série de incorreções. A seguir, os trechos corretos seguidos dos errados entre parênteses: "E o PMDB?" ("É o PMDB?"); "e meu corpo será mandado de volta" ("e meu corpo será saudado de volta"); "estou em férias 'do' Brasil" ("estou em férias do 'Brasil'"); "eu penso em nossos demônios resistentes" ("eu penso em nossos domínios resistentes"); "a boa intenção de um grande homem" ("a boa atenção de um grande homem"); "vão passar do primitivismo à decadência?" ("vão passar do primitivismo à decência?"); "onde os lamentos religiosos dos 'muezzins'" ("onde os lamentos religiosos dos 'muerzins'"); "dos templos de Luxor e Karnak" ("dos templos de Luxor e Karmak"); "vendo aquele passado como um futuro" ("vendo aquele passado com um futuro"); "nosso amor à inflação, nossa paralisia agrária" ("nosso amor, a inflação, nossa paralisia agrária"), e "Eu não sou mais um pobre 'fellah'" ("Eu não sou mais um pobre 'feltah'").
Brasil nos segue até a tumba do faraó
Estou me arrastando pela estreita galeria da pirâmide de Quefrem, em direção ao túmulo do faraó. Tenho falta de ar, neste túnel de um metro de largura, sem oxigênio. ``Vou morrer aí dentro", penso.
Estou no Egito, onde tento esquecer o Brasil. Puxando-me pelo buraco, um velho mendigo-guia me sorri com a boca sem dentes de 5.000 anos, gemendo:
``Bakashish..." (gorjeta). Até aqui a miséria me persegue, mas ao menos o velho tem a pátina dos séculos, com sua cara de múmia boa-praça. Caio dentro da tumba do faraó. Na sala com 40 séculos, debaixo de milhões de toneladas de pedra, penso: ``É o PMDB?"
Será isso a famosa maldição do faraó? Nem aqui no Egito eu me esqueço do Barbalho? Tenho arrepios enquanto a velha múmia esfrega os dedos em minha cara: ``Money...!" Vou morrer pensando na política brasileira, e meu corpo será saudado de volta, picado de escorpiões. Dou umas libras ao velho e me arrasto para fora do buraco, sentindo-me um escaravelho. Queria esquecer o Brasil, mas ele me persegue.
Lá fora, no deserto, uma ``cáfila" de camelos (enfim, usei a palavra escolar) me examina, ruminando estranhamente. O cameleiro é um garoto gordo de camisola suja e com um boné (juro que é verdade) escrito ``Banco do Brasil". Quem lhe teria dado, o antigo Lafayette Coutinho, ex-tesoureiro do faraó?
Tento me livrar das memórias, afinal estou de férias, do ``Brasil". Mas, aqui no Egito, tenho medo do país explodir na minha ausência. Como é frágil a idéia de Brasil. Não tem a solidez das pedras do Saara. Visto de longe, pode acabar a qualquer momento. Ligo nervoso para casa: ``E aí? Tudo bem?" ``Tá."
``Mas tá tudo bem mesmo? E a inflação e o Plano Real?" Acho que estão mentindo. Ao contrário das velhas civilizações, vivemos sempre num suspense histórico. Principalmente agora que o Brasil se volta sobre si mesmo e tenta fazer uma autocrítica institucional. Conseguirá o faraó FHC fazer reformas e estabelecer o monoteísmo, como quis Akenathon há 3.500 anos? Ou os sacerdotes corruptos manterão seus templos e seus deuses com a cabeça de falcão e de chacal?
E, mesmo querendo esquecer, eu penso em nossos domínios resistentes: o utopismo, o filialismo estatal, o amor ao abstrato, o egoísmo, o horror ao trabalho prático. Lembro-me de Ulysses Guimarães, a quem se apelidava de ``múmia de faraó", e entendo como até mesmo a boa atenção de um grande homem ajudou a criar a terrível paralisia da Constituição de 88. Até na honradez erramos.
Os camelos me olham preocupados: ``Que vai ser do país?", parecem me perguntar. ``Será que vocês vão perder essa chance histórica e vão se africanizar como nós? Será que vocês vão passar do primitivismo à decência?", me perguntam os bons animais.

Miséria com nobreza
Sem resposta, fujo para as ruas populares do Cairo, onde os lamentos religiosos dos ``muerzins" no alto dos minaretes se misturam às buzinas delirantes do pior trânsito do planeta, onde os carros velhos e loucos circulam como as letras da escrita antiga.
Estou no bairro milenar de El Khalil e me perco numa doce multidão de camisolas e turbantes e de uma espantosa afetividade que contraria a imagem ocidental de árabes perigosos e de punhais pelas costas. Meu avô libanês renasce em mim e me sinto calmo como nunca, tomando chá no café de Naguib Mafhouz, o grande escritor Prêmio Nobel. Todos parecem pobres no Cairo, mas aqui a pobreza é diferente. Há o milênio no ar, na mistura de cheiros fétidos e perfumes maravilhosos.
Nossos pobres miseráveis brasileiros (lá vou eu de novo) não se amparam em nenhuma tradição. São excluídos secamente, sem passado. Já os pobres daqui têm uma linhagem que os une. Os séculos lhes deram uma grandeza serena, parece uma aristocracia sem posses, têm uma nobreza agreste e natural. Em alguns momentos se sente isso na Bahia ou no alto sertão. Nossos pobres não têm paisagem e só agora começam a ser notados pela violência.

Passado do passado
E o Brasil, que vive dentro da minha cabeça, vai se dissolvendo, enquanto começo a descer o rio Nilo. Não descreverei a experiência mística deste ``travelling" sereno ao longo das paisagens de búfalos, papiros e lótus. Por falta de espaço e também porque não sou o ``Guide Bleu". Mas sentir o vento mágico dos templos de Luxor e Karmak, do Vale dos Reis, e de Kom Ombo, até chegarmos ao panteon triunfal de Ramsés 2º em Abu Simbel, me jogou num lugar interior sem espaço nem tempo.
Eu não era mais ninguém. Era um par de olhos vendo aquele passado com um futuro: era muito menor que aquelas colunas loucas e vinha de um país mais atrasado que a Primeira Dinastia de 3.000 a.C.. Eu vinha de um país que não existia ainda, que queria nascer, que ainda não brotara como o limo primitivo do Nilo no período pliocênico.
Como seríamos daqui a 3.000 anos? Que templos teremos deixado além da barragem de Itaipu e do novo prédio do Supremo Tribunal de Justiça, que custou US$ 300 milhões para o luxo dos sacerdotes do Judiciário?
Desapareço aos poucos como um ``fade-out" de cinema. Não sei mais de onde vim.
Sinto-me um ``fellah" numa falua ou tangendo uma junta de búfalos que puxa o arado. Finalmente, entro em férias de mim mesmo, já apaixonado por Neferthari, a favorita de Ramsés, uma mulata hitita de pernas longas que era um avião.

Vitória em Paris
E, assim, sem pátria, percebo que já estou mastigando um torpe ``falafel" no vôo Egipt Air que começa a descer em Paris, que brilha lá embaixo sob o céu roxo. Sou tomado por um vazio brutal. Assim como eu era nada no Egito, um passado do passado (quando teremos um homem como Tutmosis 3º?), em Paris eu começo a me sentir um ``metéque", no passado do futuro. A Grande Arche da Defense, ali no século 21, me humilha tanto quanto o templo de Ísis em Philae. Quem sou eu, afinal? Nem a miséria do Nilo, nem a riqueza dourada de Paris?
A cidade está fervendo numa agitação de faixas e bandeiras. Hoje é o domingo das eleições. Quem vai ganhar, Chirac ou Jospin? Sou tomado de funda crise de identidade. Agora, o Brasil volta a me bater como uma fome. Em vão, procuro o nome do país nos jornais franceses. Os jornais daqui não passam o suspense dos jornais brasileiros. Não há perigo. Os jornais falam dos candidatos. Esquerda ou direita? No fundo é um luxo. A França é uma cultura mais densa que a política.
As eleições serão apenas uma mudança no molho do ``ris-de- veau". Molho ``chirac" ou ``sauce jospin"?
Me dizem que FHC está em Londres na festa da vitória contra o nazismo. No ``Le Monde" há uma fotografia com os presidentes na catedral inglesa. Esmiuço a foto em busca de FHC. Nada. Por que ele não vem amanhã para a despedida de Mitterrand na festa do Arco do Triunfo? Até a rainha vem. Por que os ``itamaratecas" o aconselharam a não vir? O Quais d'Orsay estranhou. Fico mais órfão sem presidente.
Às 8h sai o resultado. Chirac eleito. Vejo os jovens direitistas num Carnaval arrogante nos Champs Elysées. A derrota de Jospin aumenta minha solidão. Sorrio para os socialistas mal-humorados que me ignoram. Aqui, eles têm orgulho até da derrota. Todo mundo ama a França. Os pobres do Egito amam sua fome milenar. Só o brasileiro se esgueira pelos cantos com vergonha de si mesmo.
Por isso, em busca de mim, acordo cedo e corro ao Arco do Triunfo para assistir à cerimônia dos 50 anos da vitória contra os nazistas. Lá estará a bandeira brasileira num jipinho, me dizem.
Nos palanques, a França estoura de orgulho. Desde o comunista Georges Marchais até fascistas como Le Pen brilham de amor. Até os vira-latas se perfilam junto aos postes. Miterrand preside a tudo, impávido. Ele está morrendo, mas até a morte espera com respeito o fim do seu mandato. Até a morte teme a França. E eu ali, habitante de um país desconhecido, busco minha bandeirinha na multidão. Nada.
Até que, de repente, num zoom violento, vejo o rosto de Luís Eduardo Magalhães, no palanque, junto aos chefes de Estado. Num segundo, meu ego se reconstrói.
Em torno da figura do presidente da Câmara, o Brasil ressurge para mim em ondas: o Nordeste, o PFL, a Bahia, Brasília, os conchavos, nosso amor, a inflação, nossa paralisia agrária e, até mesmo em Luís Eduardo, o novo querendo nascer do arcaico. E aí eu entendo: a crise é a marca nacional. Uns têm o urso cinzento, outros a ``nouvelle cuisine". Nós temos a crise permanente... E sou tomado de funda alegria. Eu já tenho um passado. A crise é a nossa tradição. Eu não sou mais um pobre ``feltah" sem rosto nem pátria. Eu sou agora um heróico ex-combatente da Segunda Guerra Mundial.

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