São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 1995 |
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Bertolucci transforma a história em teatro
JOSÉ GERALDO COUTO
Produção: Itália, 1970, 97 min. Direção: Bernardo Bertolucci Elenco: Giulio Brogi, Alida Vali, Tino Scotti, Pippo Campanini Estréia: hoje no cine Vitrine ``Se a lenda é mais interessante que a história, imprima-se a lenda", sentencia John Ford em ``O Homem que Matou o Facínora". ``A Estratégia da Aranha", velho filme de Bertolucci relançado em cópia nova, confirma a lição, dando-lhe uma conotação política. O argumento é extraído de um conto de Borges, ``Tema do Traidor e do Herói" (do livro ``Artifícios", de 1944). No conto a história se passava na Irlanda no século 19, e o filme de Bertolucci é ambientado na Itália contemporânea. Athos Magnani (Giulio Brogi) chega a um vilarejo do norte da Itália, chamado pela ex-amante de seu pai, Draifa (Alida Valli). O pai, que tem o mesmo nome, tornou-se um herói local ao ser assinado num teatro em 1936, aparentemente por fascistas. Envolvido pela atmosfera insólita e misteriosa do lugarejo, Athos, o filho, empreende uma investigação pessoal para descobrir o assassino do pai e os motivos do crime. Interroga amigos e inimigos do herói e vai montando seu quebra-cabeça. Chega à conclusão de que a tragédia do pai foi uma encenação da qual participou, como elenco coadjuvante, toda a população da cidade. A história como teatro, a vida como representação, temas caros a Borges, aparecem no conto com a brevidade e a precisão características do escritor argentino. O relato tem apenas três páginas -é, segundo o autor, um esboço de argumento. A versão de Bertolucci não precisou complicar muito esse argumento para estendê-lo até um longa-metragem. O que o diretor italiano fez, na verdade, foi incorporar na própria ``mise-en-scène" a idéia de teatralidade. Seu filme é lento, contemplativo, antinaturalista, teatral. Realismo e verossimilhança -características em algum grau inerentes à imagem cinematográfica- são banidos da estética de Bertolucci, para quem o cinema é uma arte pictórica, cênica e coreográfica, mais do que narrativa. Essa opção traz perdas e ganhos. O que se perde, em comparação com o texto borgiano, é a idéia de mecanismo narrativo, a vertigem da velocidade (em Borges, certas frases são clarões que reiluminam todo o texto). O que se ganha, em contrapartida, é uma ópera cinematográfica de andamento onírico e notável rigor visual. Não há um único plano feio ou desleixado, um único enquadramento mal feito. Essa virtude pode ser, paradoxalmente, um defeito: embevecido com a beleza das imagens, embalado por seu ritmo meditativo, o espectador chega a esquecer a história que está sendo contada. Cria-se uma distância entre público e filme, e este tende a ser mais admirado que ``vivido". Há, contudo, momentos memoráveis, em que forma e sentido coincidem de modo absoluto. Um exemplo é a cena em que Athos, pai, e seus amigos conversam no alto de um campanário, com o vilarejo ao fundo. Contra a luz que doura a cidade, Athos é uma silhueta negra -a sombra do herói sobre a comunidade. Grande momento de grande cinema. Texto Anterior: Curitiba mostra 'gay play' de Ulysses Cruz Próximo Texto: "Uma Cama para 3" é comédia moral Índice |
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