São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cartier-Bresson registra coreografia secreta

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fica em cartaz na galeria Aliança Francesa (av. Santo Amaro, 3.921), até dia 30 de maio, uma exposição de fotografias de Henri Cartier-Bresson. Trata-se de uma mostra deslumbrante; Cartier-Bresson é um daqueles raros casos de artista cujo poder de sedução é imediato, miraculoso até. Milagres não se explicam. Ou a pessoa se rende instantaneamente à beleza dessas imagens em preto-e-branco, sem saber nem como nem por que, ou então nada no mundo será capaz de persuadi-la de que está diante de uma obra de arte.
Cartier-Bresson desafia, assim, qualquer comentário crítico. É um monstro, um prodígio de evidência.
Sucede que a exposição de suas fotos vem acompanhada de um respeitável aparato de comentários críticos. Para cada fotografia, há um texto a respeito. Você olha rapidamente a foto, e logo abaixo dela está reproduzido um comentário, assinado por alguém famoso. Milan Kundera, E.M. Cioran, Pierre Boulez, Jean Baudrillard, Jim Jarmusch, Ernest Gombrich: intelectuais de peso escrevem a propósito da obra de Cartier-Bresson ou de uma foto específica.
Creio que é inevitável uma certa decepção. Daniel Piza, em artigo para a Ilustrada, referiu-se a isso. Com raras exceções, o texto não está à altura da fotografia. Por várias razões: às vezes, o crítico se entrega a reminiscências pessoais; outras vezes, imagina uma narração, uma história que dê conta da cena fotografada; numa alternativa melhorzinha, envereda pelo descritivo, procura chamar a atenção para um ou outro detalhe, e isso ajuda. Mas...
Mas, enquanto isso, a foto de Cartier-Bresson está ali, com sua palpitação silenciosa, com seu ar de proeza fácil, com sua espontaneidade enigmática. Diante de algumas obras-primas, é comum que a gente fique pensando: ``Puxa, é tão fácil, até eu poderia ter feito isso". Saímos da exposição de Cartier-Bresson achando que há milhares de fotos para tirar no mundo... E não há maior favor que um artista possa fazer que o de tornar o mundo mais interessante, mais bonito, mais digno de ser habitado, mais rico para nós.
As fotos de Cartier-Bresson nunca são posadas: são sempre instantâneos, captam momentos casuais da vida cotidiana. Daí o ar de ``facilidade" que têm. Parecem ter sido pegas no ar.
Uma vez conheci um sujeito que tinha o talento de matar moscas com a mão. A mosca estava andando sobre a mesa, e ele sabia que não adianta nada tentar esmagá-la com um tapa. A mosca foge antes que a mão possa alcançá-la. O segredo, dizia ele, está em mirar o movimento da mosca, não em mirar o ponto em que ela está. Trata-se de dar o tapa no lugar em que a mosca não está; de pressupor, de imaginar seu vôo. Não que isso seja fácil; mas tem sua lógica. Imagino que algo parecido ocorre com Cartier-Bresson. Ele capta o instantâneo, com tudo o que isso representa de casual, de desorganização, de involuntário; as pessoas nunca estão posando para a foto. Só que, ao mesmo tempo, a fotografia se organiza maravilhosamente, segundo a mais clássica das simetrias.
As fotos de que mais gosto são aquelas que mostram muitas pessoas em movimento; crianças brincando, em especial. ``Sevilha, 1933" tem uma dúzia de moleques, entre muros em ruínas, uns imóveis, outros correndo, e em primeiro plano um garoto de muletas. Na espontaneidade do jogo, um arabesco de forma, um desenho de diagonais e de arcos imperfeitos se cristaliza.
``Madri, 1933" é ainda mais simétrico e puro na captação do instante. Doze pessoas ocupam o terço inferior da foto; o fundo é um muro branco, soprado de janelas. O miraculoso está na mistura de movimento e rígida proporção das personagens, cabeças formando isósceles e escalenos, a ponta de um pé marcando exata metade do quadro. Talvez esteja aí o segredo de Cartier-Bresson: o de pressentir uma simetria clássica numa cena de completo movimento, de casualidade total, de bagunça alegre, de vida. O maestro e compositor Pierre Boulez é, dos comentaristas dessa exposição, o que a meu ver usa o adjetivo mais acertado. Comentando uma foto em que mulheres estendem tapetes na areia, Boulez fala de um gesto ``absoluto".
``Absoluto" é algo que remete ao intransitivo, ao atemporal. O ``absoluto" é sempre alguma coisa que se resolve em si mesma; um gesto ``absoluto", como o das mulheres que estendem ao longe tapetes pelo chão, prolonga-se indefinidamente e ao mesmo tempo se resume em ato preciso, acabado e próprio.
Cartier-Bresson como que dissolve os tempos verbais: o perfeito, o infinitivo, o gerúndio e o aoristo se resumem numa cena que foi, que sempre é, que está sendo, que é um estar-a-ser.
Talvez o milagre de suas fotos esteja nisto: prova concreta de que entre acaso e harmonia, entre desorganização e ordem, entre composição e instantâneo, não há contradição.
E é assim que algumas de suas fotos parecem obedecer a uma coreografia secreta. Como se fossem cenas de dança, cuja música não podemos ouvir. Precisamente, a ``música" da cena foi retirada. Foi tirada -do mesmo modo com que se ``tira" uma foto.
``Tirar" uma foto: a expressão é significativa, pois sugere uma subtração, um roubo, uma evicção do real. Cada foto é um instante roubado. Roubado inutilmente, porém. O que se toma, o que se capta, o que se captura do real, o que se furta ao fluxo do tempo e se fixa no papel, de nada serve. O momento precioso que foi fotografado se revela vazio, fútil, aéreo e vão. Todo sorriso numa foto é sem sentido.
Sem sentido? Aí é que aparece um Cartier-Bresson. Impossível descobrir um ``sentido" em suas fotos. Podemos, é claro, imaginar uma narrativa, uma história, que desse significado a esta ou aquela cena. Mas seria bobo fazer isso. Pois o artista joga, sem dúvida, com o acaso, com o acidental, com o sem-sentido das cenas.
São cenas, simplesmente. Mas, como nelas se vê uma simetria de formas, uma duplicidade de linhas e de imagens (o tema do ``duplo" está quase sempre presente em Cartier-Bresson), enfim, como nelas há ordem estética, ficamos sempre atrás do ``sentido" que possam ter. Isto é, o observador nota a presença de uma ordem formal e automaticamente pressupõe que atrás dessa ordem formal exista uma intencionalidade por parte do autor. Associa então a intencionalidade a um sentido, a um significado ideológico, filosófico, narrativo, seja lá o que for.
Mas não há sentido, nem explicação. Há apenas a promessa, a ilusão, de um sentido. Como na vida.

Texto Anterior: NOITE ILUSTRADA
Próximo Texto: Arnaldo Baptista compõe para curta sobre loucura
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.