São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 1995 |
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Cartier-Bresson registra coreografia secreta
MARCELO COELHO
Cartier-Bresson desafia, assim, qualquer comentário crítico. É um monstro, um prodígio de evidência. Sucede que a exposição de suas fotos vem acompanhada de um respeitável aparato de comentários críticos. Para cada fotografia, há um texto a respeito. Você olha rapidamente a foto, e logo abaixo dela está reproduzido um comentário, assinado por alguém famoso. Milan Kundera, E.M. Cioran, Pierre Boulez, Jean Baudrillard, Jim Jarmusch, Ernest Gombrich: intelectuais de peso escrevem a propósito da obra de Cartier-Bresson ou de uma foto específica. Creio que é inevitável uma certa decepção. Daniel Piza, em artigo para a Ilustrada, referiu-se a isso. Com raras exceções, o texto não está à altura da fotografia. Por várias razões: às vezes, o crítico se entrega a reminiscências pessoais; outras vezes, imagina uma narração, uma história que dê conta da cena fotografada; numa alternativa melhorzinha, envereda pelo descritivo, procura chamar a atenção para um ou outro detalhe, e isso ajuda. Mas... Mas, enquanto isso, a foto de Cartier-Bresson está ali, com sua palpitação silenciosa, com seu ar de proeza fácil, com sua espontaneidade enigmática. Diante de algumas obras-primas, é comum que a gente fique pensando: ``Puxa, é tão fácil, até eu poderia ter feito isso". Saímos da exposição de Cartier-Bresson achando que há milhares de fotos para tirar no mundo... E não há maior favor que um artista possa fazer que o de tornar o mundo mais interessante, mais bonito, mais digno de ser habitado, mais rico para nós. As fotos de Cartier-Bresson nunca são posadas: são sempre instantâneos, captam momentos casuais da vida cotidiana. Daí o ar de ``facilidade" que têm. Parecem ter sido pegas no ar. Uma vez conheci um sujeito que tinha o talento de matar moscas com a mão. A mosca estava andando sobre a mesa, e ele sabia que não adianta nada tentar esmagá-la com um tapa. A mosca foge antes que a mão possa alcançá-la. O segredo, dizia ele, está em mirar o movimento da mosca, não em mirar o ponto em que ela está. Trata-se de dar o tapa no lugar em que a mosca não está; de pressupor, de imaginar seu vôo. Não que isso seja fácil; mas tem sua lógica. Imagino que algo parecido ocorre com Cartier-Bresson. Ele capta o instantâneo, com tudo o que isso representa de casual, de desorganização, de involuntário; as pessoas nunca estão posando para a foto. Só que, ao mesmo tempo, a fotografia se organiza maravilhosamente, segundo a mais clássica das simetrias. As fotos de que mais gosto são aquelas que mostram muitas pessoas em movimento; crianças brincando, em especial. ``Sevilha, 1933" tem uma dúzia de moleques, entre muros em ruínas, uns imóveis, outros correndo, e em primeiro plano um garoto de muletas. Na espontaneidade do jogo, um arabesco de forma, um desenho de diagonais e de arcos imperfeitos se cristaliza. ``Madri, 1933" é ainda mais simétrico e puro na captação do instante. Doze pessoas ocupam o terço inferior da foto; o fundo é um muro branco, soprado de janelas. O miraculoso está na mistura de movimento e rígida proporção das personagens, cabeças formando isósceles e escalenos, a ponta de um pé marcando exata metade do quadro. Talvez esteja aí o segredo de Cartier-Bresson: o de pressentir uma simetria clássica numa cena de completo movimento, de casualidade total, de bagunça alegre, de vida. O maestro e compositor Pierre Boulez é, dos comentaristas dessa exposição, o que a meu ver usa o adjetivo mais acertado. Comentando uma foto em que mulheres estendem tapetes na areia, Boulez fala de um gesto ``absoluto". ``Absoluto" é algo que remete ao intransitivo, ao atemporal. O ``absoluto" é sempre alguma coisa que se resolve em si mesma; um gesto ``absoluto", como o das mulheres que estendem ao longe tapetes pelo chão, prolonga-se indefinidamente e ao mesmo tempo se resume em ato preciso, acabado e próprio. Cartier-Bresson como que dissolve os tempos verbais: o perfeito, o infinitivo, o gerúndio e o aoristo se resumem numa cena que foi, que sempre é, que está sendo, que é um estar-a-ser. Talvez o milagre de suas fotos esteja nisto: prova concreta de que entre acaso e harmonia, entre desorganização e ordem, entre composição e instantâneo, não há contradição. E é assim que algumas de suas fotos parecem obedecer a uma coreografia secreta. Como se fossem cenas de dança, cuja música não podemos ouvir. Precisamente, a ``música" da cena foi retirada. Foi tirada -do mesmo modo com que se ``tira" uma foto. ``Tirar" uma foto: a expressão é significativa, pois sugere uma subtração, um roubo, uma evicção do real. Cada foto é um instante roubado. Roubado inutilmente, porém. O que se toma, o que se capta, o que se captura do real, o que se furta ao fluxo do tempo e se fixa no papel, de nada serve. O momento precioso que foi fotografado se revela vazio, fútil, aéreo e vão. Todo sorriso numa foto é sem sentido. Sem sentido? Aí é que aparece um Cartier-Bresson. Impossível descobrir um ``sentido" em suas fotos. Podemos, é claro, imaginar uma narrativa, uma história, que desse significado a esta ou aquela cena. Mas seria bobo fazer isso. Pois o artista joga, sem dúvida, com o acaso, com o acidental, com o sem-sentido das cenas. São cenas, simplesmente. Mas, como nelas se vê uma simetria de formas, uma duplicidade de linhas e de imagens (o tema do ``duplo" está quase sempre presente em Cartier-Bresson), enfim, como nelas há ordem estética, ficamos sempre atrás do ``sentido" que possam ter. Isto é, o observador nota a presença de uma ordem formal e automaticamente pressupõe que atrás dessa ordem formal exista uma intencionalidade por parte do autor. Associa então a intencionalidade a um sentido, a um significado ideológico, filosófico, narrativo, seja lá o que for. Mas não há sentido, nem explicação. Há apenas a promessa, a ilusão, de um sentido. 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