São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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A outra corrupção

JANIO DE FREITAS

A cada dia surge mais uma denúncia grave, com a respectiva comprovação, em torno do bilionário projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) -e, a cada denúncia, tudo o que o governo faz é mais uma concessão irregular ou ilegal à empresa-pivô, Esca, desse caso mais do que escandaloso.
Devedora de R$ 7,8 milhões à Previdência, a Esca, já por isso, está legalmente inabilitada para contrato de qualquer espécie com o governo. Está envolvida em fraudes, com uso de documentos falsos, para dar como quitada a dívida com a Previdência. Está escolhida para o contrato de gerenciamento do Sivam sem a necessária concorrência pública. A estes traços ligeiros de sua fisionomia, a Esca vem juntar a negociação repentina do seu controle acionário com a Indústria Eletroeletrônica Paranaense (Inepar). O produto financeiro da venda se destinaria a pagar a primeira parcela, de R$ 4,8 milhões, da sua dívida com a Previdência.
A negociação é, explicitamente, a confissão de que a Esca não dispõe de capital. Nem mesmo para quitar uma dívida e assim ganhar do governo, de presente, a participação em um projeto que lhe renderá centenas de milhões. Logo, tal como não tem as condições morais mínimas, não tem sequer as condições financeiras para desenvolver o gerenciamento do Sivam. Mas tem o benefício de uma proteção governamental e de certas áreas militares, incluidas a própria Presidência da República e a direção do Sivam, como só a hoje estourada empreiteira Mendes Jr. conseguira ter, no governo Sarney.
A pressão do governo americano pesou muito para a vitória da Raytheon na concorrência dos equipamentos do Sivam. Até pouco antes desta decisão, que foi objeto de conversas do então ministro Fernando Henrique quando de visita sua aos Estados Unidos, os militares brasileiros tinham preferência nítida pelos equipamentos franceses.
Por mais que se refiram ao Sivam como vigilância contra o contrabando de drogas e minérios preciosos, para o controle ambiental e de tráfego aéreo, o projeto tem propósitos fundamentalmente militares. E a preocupação real dos militares brasileiros, em relação à Amazônia, não são os países fronteiriços. É a suposta necessidade que os Estados Unidos terão, mais cedo ou mais tarde, de estender seu controle às reservas naturais e territoriais amazônicas. Daí a derrotada preferência pelos equipamentos europeus.
Já a predileção pela Esca, mais forte do que as leis a que o governo se diz tão obediente, não provém de pressões externas e concessões internas que exponham a fragilidade da soberania nacional e, sobretudo, a dos que falam em nome dela no plano internacional.
Uma explicação, de procedência militar mas não oficial, é de que a Esca, presidida por um coronel da reserva e detentora de contratos com a Marinha e a Aeronáutica, inspira confiança aos militares e lhes permitiria manter o seu controle sobre o gerenciamento do Sivam. A explicação é inconvincente: qualquer que fosse o gerenciador, o controle seria dos militares. Outra explicação é o corporativismo que favorece militares passados da caserna para a iniciativa privada. Disso há incontáveis exemplos, mas, no caso, não há provas de que levasse aos tamanhos excessos com que o governo tem favorecido a Esca.
Seja como for, corrupção não é apenas suborno. É, também por definição, todo procedimento que perverte, que corrompe a moralidade pessoal ou administrativa. Sob este significado, a corrupção já alcançou, no Sivam, dimensões amazônicas. Significado que não exclui, porém, a presença do interesse financeiro: o contrato com o Sivam representa uma fortuna em lucros para os donos da Esca.
O Sivam começou suscitando muitas dúvidas e dividindo muito as opiniões. Mas já conquistou a quase unanimidade. Contra.

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