São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Habermas e a economia

EDUARDO GIANNETTI

É compreensível que quem perdeu a fé na história busque resposta na economia e na ética
Os muros continuam caindo. Na Argentina, quem diria, o peronismo virou símbolo e promessa de estabilidade monetária. Da Inglaterra vem a notícia de que o partido trabalhista, há 16 anos na oposição, eliminou os últimos vestígios de marxismo da sua carta de princípios na mesma semana em que seu novo líder, Tony Blair, ousou fazer o que nenhum de seus antecessores tinha feito -elogiar publicamente a firmeza e a capacidade de liderança demonstradas por Margaret Thatcher.
Na era pós-socialista, não foram só os mapas-múndi e atlas geográficos que ficaram subitamente obsoletos. As certezas e couraças do pós-guerra tornaram-se sobrevivências anacrônicas e as fronteiras ideológicas estão ficando cada vez mais fluidas. Longe vai o tempo em que, como ironizava o economista de Chicago George Stigler em suas memórias, ``denunciar os EUA é quase o único laço unindo os intelectuais europeus e criticar a ciência econômica é o principal elo ligando entre si as outras ciências sociais".
Uma boa amostra das metamorfoses pelas quais vem passando o pensamento da esquerda européia nos últimos anos é a surpreendente entrevista concedida pelo sociólogo alemão Jurgen Habermas a dois intelectuais brasileiros, Barbara Freitag e Sergio Paulo Rouanet, publicada no ``Mais!" (Folha, 30/4/95).
Habermas, como se sabe, é o principal herdeiro da ``segunda geração" da Escola de Frankfurt e, ao que tudo indica, o seu derradeiro expoente. Boa parte de sua notoriedade -uma pesquisa feita nos anos 80 registra quase mil títulos na literatura secundária especializada sobre sua obra- deriva do simples fato de que algo obscuro e ininteligível é geralmente levado mais a sério e visto como mais profundo do que algo claro e inteligível. Como dizia Nietzsche sobre Hegel: ``Um pensador profundo tem ainda mais medo de ser entendido do que de ser mal-entendido". Este é o drama das esfinges sem segredo.
A questão da clareza, diga-se de passagem, é uma das principais pendências separando dialéticos e analíticos na filosofia contemporânea. Diante da sintaxe torturada e da densa opacidade da prosa dialética na tradição que vai de Hegel a Habermas, a reação característica do filósofo analítico é bem representada pela ``boutade" de Schopenhauer sobre o primeiro -``Uma página de Hume vale mais do que as obras completas de Hegel"- e pela conclusão de Quentin Skinner sobre o segundo.
``Ler Habermas", afirma o professor de filosofia de Cambridge ao final de uma minuciosa análise de seu pensamento, ``é extraordinariamente parecido com ler Lutero, exceto pelo fato de que este escreveu prosa tão maravilhosa. Certamente merecemos algo mais rigoroso de nossos filósofos sociais do que a continuação do protestantismo através de uma metodologia diferente".
Não se trata aqui, obviamente, de buscar uma trilha hermenêutica no fog conceitual habermasiano ou fazer um balanço de sua obra. Mas, como a tradição dialética pós-marxista a que ele pertence continua deslumbrando boa parte da ``intelligentsia" brasileira -inclusive um batalhão de desafetos da teoria econômica-, talvez valha a pena gastar algum tempo avaliando a quantas andam suas idéias.
A surpresa capital da entrevista de Habermas é, sem dúvida, a mudança radical de atitude em relação a esse monstro do saber instrumental e tecnocrático -a ``razão asseptizada" do positivismo por excelência- que é a economia na ótica frankfurtiana: ``Devo confessar que, desde 1989, lamentei sinceramente, pela primeira vez, não ser economista. Estudei economia durante três semestres e, depois, esqueci tudo. Foi então que estudei Marx".
Mais sensacional ainda é a revelação feita logo adiante: ``Lamento extraordinariamente que minha educação tenha seguido rumos diferentes. Eu deveria ter sido economista. Agora é tarde! Não quero me esquivar, mas agora é a vez dos especialistas. Talvez eu ainda possa inspirar algumas pessoas a se especializarem nessa área".
Espero ter essa passagem sempre à mão toda a vez que meus alunos de graduação vierem com a brilhante idéia -eu também a tive no meu tempo!- de revolucionar a teoria econômica rejeitando o ``mero entendimento" e abraçando a sublime dialética do ``retorno à razão".
A sensação de arrependimento nas passagens citadas é clara e sincera. É pena, no entanto, que os entrevistadores de Habermas não tenham tido a curiosidade de ir além e perguntar-lhe a que, mais precisamente, ele estaria se referindo ao falar em coisas como estudar economia, ser economista e especializar-se nessa área. Qual teria sido, afinal, o teor de uma ``guinada econômica" na trajetória intelectual de Habermas?
Marx, é evidente, não seria. Como ele diz, foi no momento em que começou a estudá-lo que ele perdeu o rumo da economia e esqueceu o que tinha aprendido. É reconfortador saber que para Habermas ``a história nunca pode ser verdadeiramente mestra num sentido afirmativo". Um dos piores vícios intelectuais do marxismo sempre foi o de travestir preferências normativas em leis históricas inexoráveis, como se houvesse um rumo para o qual a própria história apontasse o dedo. É compreensível que alguém que tenha perdido a fé na história volte-se para a economia e a ética em busca de respostas.
É salutar também que Habermas descarte qualquer noção de que a economia mundial seja um jogo de soma-zero no qual os países ricos são ricos porque os países pobres são pobres. ``O Primeiro Mundo", afirma, ``pode sobreviver perfeitamente sem o Terceiro." Fica claro, portanto, que a guinada econômica de Habermas não enveredaria por qualquer teoria do imperialismo, dependência ou exploração da periferia pelo centro.
Outra pista importante é a menção ao ano de 1989. Foi a partir daí, com o colapso do castelo de cartas soviético, que Habermas sentiu a necessidade de estudar economia para fazer ``uma crítica do capitalismo, uma crítica diferente, com outras premissas, mas, ainda assim, uma crítica energética". O sentimento agudo de que há algo profundamente errado com o capitalismo é antigo. O que continua faltando é um bom argumento que possa justificá-lo.
Marx reclama, no prefácio de um de seus livros, que nunca alguém havia escrito tanto sobre dinheiro com tanta falta dele. O paradoxo de Habermas é análogo a este. Nunca alguém falou tanto em defesa da comunicação não-distorcida, do debate aberto e das condições ideais do discurso de uma forma tão opaca, tortuosa e impenetrável.
Não deixa de ser deliciosamente irônico que o filósofo da ação comunicativa tenha armado tamanha confusão com seus interlocutores brasileiros em torno da mais trivial exigência prática -chegar a um acordo sobre a hora em que deveria começar a entrevista. Como a sorte ajudou, a entrevista saiu.

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