São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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botando pra fora os podres

MARILENE FELINTO

Nunca tive paciência com meninos de rua -talvez por ter quase sido um deles. Trato com sincera indiferença quem aparece à janela do meu carro.
Até outro dia, os moleques pareciam entender meu recado.
Hoje, tudo mudou. Guardei segredo desse assalto, como menino de escola que apanha na rua e tem vergonha de contar em casa -afinal, o mais forte era eu.
Primeiro, o trailer de cinema. Meu carro parado num demorado sinal de trânsito, seis da tarde numa ladeira de São Paulo, um menino branco, de menos de um metro de altura, surgiu à minha janela aberta.
-É um assalto, tia, passa a bolsa.
-O quê?
-É um assalto, tá duvidando?
Como ele era muito baixo, eu não via o corpo colado à porta, somente sua dura cara de anjo. Pensei no canivete, no revólver que ele teria.
Decidi que abriria a porta, num golpe brusco, atirando o infeliz para cima do carro ao lado.
Quando fingi que ia pegar a bolsa, o menino saiu correndo. Do assalto frustrado, ficou alívio e um início de raiva sufocada.
Lembrei dos filhos de FHC. Vinha pensando neles desde que não soube explicar a um amigo europeu a existência dos meninos de rua, enrolados em panos imundos, dormindo feito sacos de lixo nas sarjetas.
Difícil entender por que o novo governo não tem como primeira tarefa tirar da rua esses meninos.
Pouco me importam as justificativas de ordem econômica ou social.
Lembrei que eu já tinha me sentado na mesma sala que os filhos de FHC, uns dez anos atrás, na casa de amigos em São Paulo.
Alguém avisou: aqueles são filhos do Fernando Henrique. Olhei sem emoção para os jovens da minha idade. Até então ninguém imaginava FHC na Presidência. Muito menos eu, que voto em outra gente.
Pois bem, pensei, esse presidente parecia que era gente como a gente. Afinal, sentei na mesma sala que os filhos dele.
Não era. Era mais um desses professores distantes, que quando eu, menina, encontrava pela frente, perdia o interesse pelas aulas.
Então veio o filme de fato: eu indo trabalhar no 1º de maio, nove da manhã na avenida deserta. Só vi quando o menino negro já estava parado à janela do carro, abrindo a boca enorme para exigir dez reais, ou ele estourava o vidro com a pedra escondida na camiseta.
A pedra era grande, tive nojo. Passei o dinheiro nervosa. Foram duas semanas entre o trailer e o filme.
Logo depois do assalto, avistei dois policiais a cavalo, fazendo ronda. Fiquei quieta, muda, não conseguiria (ou não quis) falar.
Sufoquei a náusea, fui trabalhar ferida na minha dignidade de menina também miserável. Eu não era mais uma cidadã respeitável num carro. Nunca fui. O Brasil não é respeitável. Queria esperar na esquina o menino armado. Fazer vingança.
Eu achava que tinha mais direito (do que os outros) de não ser assaltada, porque a vida nunca foi boazinha comigo, nem eu com ela, nesse misto de ruindades declaradas.
No dia seguinte, acordei gripada e com uma espécie de micose de pele (dermatite de contato, o médico diria) -ou seja, era eu botando pra fora os podres, os meus, os dos sacos de lixo das ruas brasileiro-cariocas.

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