São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 1995
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O sonho da razão

CARLOS HEITOR CONY

Foi numa visita ao Museu do Prado, há muitos anos, que tive um dos raros e imerecidos momentos de auto-estima: cismei que Goya se identificava comigo. Podia ter tido a cisma com Velásquez, El Greco ou Zurbarán, mas fiquei mesmo com ele.
No momento não tinha no bolso (nem em lugar algum) os cinco milhões de dólares para comprar um pequenino quadro que me deslumbrou. Acabei fazendo o que todos costumam fazer: na portaria comprei duas estampas de sua dupla face: a do servo da corte que pintava o rei, os príncipes, os nobres e seus folguedos (``La Gallina Ciega"), e a do homem surdo e desesperado que pintava para si mesmo (``Saturno devorando seus filhos").
Ao chegar em casa, tirei do gabinete um Volpi que nada me dizia e pendurei as duas estampas diante de mim. É para elas que olho cada vez que abro a máquina de escrever -ou, mais recentemente, quando ligo o indomável 486 que me tortura e emburrece para além da burrice a que já me habituei.
Quando escrevo para os outros, me detenho na cabra-cega (na Espanha é galinha-cega), faço o que posso para retratar os folguedos da corte -que entre nós, como nos tempos de Goya, é muito chegada a esse tipo de diversão.
Se escrevo para mim mesmo, contemplo os olhos apavorados de Saturno (o Tempo), o sangue escorrendo pelo corpo decepado do filho. Não foi à toa que Goya o levou para a Quinta del Sordo. O sonho da Razão produz monstros -por sinal, é o nome de um de seus ``caprichos" nessa mesma quinta. Tá tudo ali.
Como não tenho filho pequeno -o que está disponível é mais alto do que eu e dificilmente seria digerido- devoro a mim mesmo. E o faço com tal entusiasmo que sinto na boca o gosto do sangue. E sei que meus olhos estão abertos, abertos e apavorados, olhando o nada que é a paga final e coerente do tempo.

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