São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 1995
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Terence Davies decepciona em Hollywood

AMIR LABAKI
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

``A Bíblia de Neon", do cineasta britânico Terence Davies, foi ontem a primeira grande frustração da mostra competitiva de Cannes-95. Esperava-se muito de sua estréia em produções americanas, depois do imenso sucesso de crítica de seus dois longas anteriores, ``Vozes Distantes" (1987) e ``O Fim do Longo Dia" (1992). Era seu primeiro filme com uma estrela do porte de Gena Rowlands (``Glória", ``A Outra") e também a partir de um original literário, de John Kennedy Toole.
``Terence Davies foi extremamente fiel ao livro", disse Rowlands ontem à Folha .``É interessante a sintonia entre o original e o trabalho todo próprio com o tempo de Davies"'. ``A Bíblia de Neon" se passa numa cidade indefinida do sul dos EUA durante os anos 40. Uma ex-cantora de boate, Mae (Rowlands), refugia-se do desemprego na casa da irmã reprimida, Sarah (Diane Scarwid de ``Rumble Fish"). É a gota d'água que termina de desequilibrar a família.
O violento marido de Sarah, Frank (Denis Leary), não pára de espancá-la e acaba fugindo para o ``front" italiano da Segunda Guerra, para nunca mais voltar. Seu filho, David, interpretado aos dez anos por Drake Bell e aos 15 por Jacob Tierney, encasula-se cada vez mais.
Vê-se logo que se trata do típico universo familiar torturado e misantropo dos filmes anteriores de Davies. Para acentuar as semelhanças, o mundo do espetáculo e o da religião vêm marcar presença. Este último, contudo, ressurge aqui numa versão extra-católica. A Bíblia de neon de que fala o título pertence à série de pastores caça-niquéis que cruzavam os EUA já naqueles dias.
O sucesso desse tipo de charlatão da fé é apenas um dos comentários críticos de Terence Davies à América profunda. O puritanismo sexual, o nacionalismo exacerbado e o racismo explícito acabam de formar o quadro. Sua América é a pátria do reacionarismo. Não surpreende que a fogosa Mae tenha dificuldades para adaptar-se.
Terence Davies estrutura temporalmente ``A Bíblia de Neon" com a mesma liberdade anterior. Sua narrativa segue um pouco a lógica da memória, ainda que um pouco menos aleatoriamente que em ``O Fim do Longo Dia". A trajetória circular se mantém.
O sul dos EUA surge colorido e superestilizado. Os enquadramentos de Davies continuam estudadamente simétricos. A câmera repete sua sintaxe de lentos e elegantes travellings e zooms. A música, centrada mais uma vez nos clássicos populares americanos, frisa ciclicamente o tom melancólico.
Os elementos que situaram Davies na vanguarda cinematográfica britânica e européia estão todos de volta em ``A Bíblia de Neon". A produção americana não despersonalizou seu cinema. O problema é outro: tudo ressurge muito menos fresco e mais frouxo. A história jamais embala. Os personagens jamais se solidificam. As belíssimas imagens jamais emocionam.
Mesmo a grande Gena Rowlands alterna momentos marcantes com outros de visível desconforto. E estes não são aqueles em que se permite o desconhecido. ``Nunca tinha cantado antes num filme", reconheceu ontem na entrevista. Rowlands interpreta -e bem- ``My Romance". É um rara sequência de impacto.
``A Bíblia de Neon", que chega ao Brasil no segundo semestre, representa uma transição na carreira de Davies. Da Grã-Bretanha aos EUA, do memorialismo à plena ficção, de autor cult a diretor de um cinema de arte mais comercial.

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