São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 1995
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A tirania do corporativismo

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Sócrates, quando condenado à morte por tribunal de Atenas, teve a possibilidade de fugir. Seus discípulos e amigos, alegando que a sentença fora injusta, conseguiram que as próprias autoridades fizessem vistas grossas para que o velho pensador deixasse a cidade.
Sócrates não aceitou e a Crito, que lhe preparou a fuga, disse:
``Então eles dirão: Tu, Sócrates, estás rompendo os compromissos e acordos que conosco fizeste sem ser pressionado" (...) ``Tu tiveste tua escolha e poderias ter ido tanto para Lacedemônia como para Creta, que frequentemente elogias por sua boa forma de governo" (...) ``Mas se tu fores além, (...) rompendo os compromissos e acordos feitos conosco, lesando àqueles a quem menos deverias lesar, ou seja, a ti mesmo, a teus amigos, a teu país e a nós, ficaríamos indignados contigo enquanto vivesses, e nossas irmãs, as leis do mundo inferior, vão receber-te como a um inimigo; porque saberão que tu fizeste o máximo para nos destruir" (...) ``Esta, caro Crito, é a voz que pareço escutar" (...) ``Deixe-me, então, Crito, cumprir os desígnios da divindade, e seguir para onde ela guia" (Platão-Crito, Encyclopaedia Britannica, The Great Books, 1955, vol. 7, p. 216-9).
Pelo que fez e disse -visto que nada escreveu-, Sócrates é imortal, mas seu sacrifício para preservação das instituições de sua ``Polis" serve de lição que os servidores das corporações estatais no país não seguem, pois se colocam como tiranos da cidadania, escravizadores do povo e julgadores supremos do Poder Judiciário.
Não quero discutir se têm ou não direito ao que pretendem. O cenário para tal discussão é a Justiça do Trabalho, que, num país democrático, representa o ``poder de estabilização" das relações entre empregados e empregadores.
Como todo órgão composto de homens, pode acertar e errar, mas o que decide passa a ser lei entre as partes, e o seu desrespeito é uma dura violação da democracia. É o caminho mais fácil para a ditadura.
H.L.A. Hart dizia, em magnífico livro sobre os fundamentos do direito, que:
``A lei ou a Constituição é o que a Corte diz que ela é" (``The concept of Law", ed. Clarendon, 1961, p. 136), devendo, pois, as decisões do Poder Judiciário ser respeitadas, para que as instituições não passem a ser julgadas pelos que a elas estejam submetidos.
Não obedecer a uma decisão judicial, porque a parte vencida desejaria outra interpretação, é criar no país 155 milhões de Poderes Judiciários, porque cada brasileiro teria direito de obedecer àquelas decisões que lhe agradassem e desobedecer àquelas que lhe desagradassem. E, à evidência, se hoje a CUT desafia o Poder Judiciário, amanhã a Fiesp poderá fazê-lo, e o Poder Judiciário terá desaparecido como instituição, como se suas decisões fossem meros aconselhamentos para serem seguidos a quem apetecesse, tais quais os conselhos românticos em revistas para namorados.
O que de mais grave ocorre, entretanto, é que as greves só têm ocorrido nos serviços públicos, o que faz, de rigor, os cidadãos servidores dos servidores públicos e deles vítimas, na medida em que têm estes, por suas corporações, o poder de paralisar a nação.
Há, portanto, uma verdadeira chantagem de quem detém o monopólio de servir e passa a exigir da população que esta ou ceda perante suas reivindicações ou deixe de receber os serviços públicos, pouco se importando com as decisões dos tribunais, que considerem as greves abusivas e impatrióticas.
Repito que não entro no mérito da decisão do TST, mas sim, no que é incomensuravelmente mais grave, ou seja, no desrespeito aos poderes constituídos, apresentado como uma demonstração de força das categorias que se servem de seu ``monopólio" de serviços para vilipendiar as instituições.
No episódio entre os violadores da lei e o governo, se este ceder, amanhã todos poderão desobedecer às decisões judiciais em face do precedente criado, e não só àquelas emanadas do Poder Judiciário, mas às leis do Legislativo e às ordens do Executivo. E, quando isso acontecer, convencido estou de que o caos se instalará, com o fim da democracia.
Brincam as corporações, que têm o monopólio dos serviços públicos, com as garantias democráticas, e podem estar lançando as sementes do fim da liberdade, que, a duras penas, todos lutamos para restabelecer no país.
Mais do que nunca, entendo que os monopólios devem, todos, acabar, muito embora seja favorável a que as privatizações dos serviços públicos sejam feitas no regime jurídico de direito administrativo (concessões, permissões e autorizações -art. 175 da CF) e não do direito privado (artigo 173) para que o governo se alforrie da escravidão que lhe estão impondo as corporações, mas continue com o controle a bem do interesse público.
Sem obediência à lei, não há democracia. E só há uma interpretação definitiva da lei que a Constituição Federal consagra, que é a do Poder Judiciário. Que todos meditem sobre isso e que o bom senso leve os servidores grevistas a retornarem ao trabalho para depois discutirem suas reivindicações, em um ambiente de respeito mútuo e sem deletérias radicalizações.

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