São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 1995
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Tecladista dá vida artificial a Jim Morrison

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 26/05/95
Baseados gigantes de todo o mundo, acendei-vos! O grupo californiano The Doors ressuscita com aparelhos o poeta e vocalista Jim Morrison (1943-1971).
O tecladista Ray Manzarek, 60, parceiro de Morrison, entreabre seu tesouro de gravações e inclui três faixas inéditas com a voz do ``Rei Lagarto" no relançamento em CD do álbum ``An American Prayer" (1978), que acontece em junho no Brasil e ocorreu no último dia 23 de maio nos EUA.
Serão lançados quatro CDs com material gravado ao vivo do grupo no ano que vem, pela Elektra.
Manzarek falou à Folha no início da semana, de sua casa, em Los Angeles. Agora diz cultuar o Sol e jura que, se o amigo estivesse vivo, faria o mesmo.
``Rei Lagarto"' (Lizard King) era como Morrison se autodenominava. Hoje o título lembra mais título de desenho de Walt Disney do que epíteto da ``bête noire" contracultural que foi Morrison.
Com performances explícitas de Morrison e demorados improvisos do trio de instrumentistas -se valiam de amplificação altíssima para a época-, os Doors arrebataram os jovens daquela era lisérgica em que a música cumpria um papel mínimo na diversão.
Os seis LPs de estúdio que lançaram em quatro anos consolidaram o grupo como verbete do rock e da histeria provocada por ele. Tanta que Morrison cansou da superexposição e foi morrer bêbado em uma banheira de Paris.
Manzarek afirmou que não viu o cadáver do parceiro. Concluiu que ele não havia morrido. Deu a largada para o culto necrofílico do Lagarto, do qual Manzarek se investiu como sumo pontífice. A propósito, não custa lembrar um verso de Morrison: ``Podemos planejar um assassinato ou fundar uma religião".
A partir da morte do líder, Manzarek e os dois outros membros remanescentes -o guitarrista Robby Krieger e o baterista John Desmore- fizeram a segunda opção. religiosamente, passaram a explorar o espólio de gravações do grupo. Os discos se multiplicaram.
``An American Prayer" (sintomaticamente, Um Orador Americano) junta a voz de Morrison, a declamar poemas em 1970, e música dos Doors em 1978. Um monstro de Frankenstein bem-sucedido (leia texto ao lado).
Numa das faixas adicionais, ``The Bird Song", o grupo volta a tocar depois de uma década de saudável silêncio.
Abaixo, o alegre Manzarek fala de seus projetos literomusicais com o poeta beatnik Michael MacLure e alivia o mundo ao revelar que trocou o teclado pelo piano. ``Light my Fire" nunca mais...

Folha - Por que você incluiu faixas inéditas no CD?
Ray Manzarek - Porque é um CD e cabem mais faixas. Achei interessante acrescentar o poema ``Babylon Fading", que musicamos em 1978. ``Bird of Prey" traz a voz a capela de Jim num poema inédito, declamado com grande emoção. E eu, Robby e John resolvemos nos juntar para tocar de novo com Jim na faixa ``The Ghost Song", que acabamos de gravar.
Folha - Vocês voltariam a tocar juntos, ou foi nostalgia?
Manzarek - Tocamos só com Jim e vamos tocar só com ele. Não se trata de nostalgia porque não sentimos falta daquela época. Não voltaríamos porque éramos quatro e em três não funcionamos. Lançamos dois discos, mas foi um fracasso que soubemos assimilar. Há dois anos tocamos no ``Rock'n' Roll Hall of Fame", com o Eddie Vedder do Pearl Jam como vocalista. Só como homenagem.
Folha - Você tem ainda gravações inéditas com Jim?
Manzarek - Tenho uns 20 takes, mas que não rendem um disco. Não pretendo lançá-los. Não vale a pena. O legado de Jim já está consolidado.
Folha - Afinal, ele era um intelectual de verdade ou um dândi superficial?
Manzarek - Não diga isso! Era um intelectual na acepção verdadeira do termo. Estudava e recitava William Blake, Nietzsche, Sartre, Rimbaud e Kerouak. Aprendi muito com ele. Era, como eu, um existencialista e um interessado nas manifestações espirituais do Oriente, como o budismo e a religião indígena. Jim mostrou o lado selvagem e negativista ao pop.
A pergunta que você acabou de formular é antiquada porque lembra a época em que os Doors estavam na ativa, e os intelectuais não se conformavam de ver um colega de cátedra rebolando. Jim tinha aquelas pernas lindas que exibia com as calças apertadas de couro e era poeta e filósofo.
Folha - O que ele estaria fazendo hoje, se estivesse vivo?
Manzarek - Estaria como eu: prestando louvores ao Sol. Pratico a religião contemporânea do Sol. Poucas pessoas sabem, mas Jim era uma pessoa extremamente religiosa.
Folha - O filme ``The Doors" de Oliver Stone não passa muito essa idéia...
Manzarek - É uma grande bobagem! O Manzarek do filme tem mais a ver com o Kyle MacLachlan do que comigo. Parece um bobalhão, um nerd. Não gostei do filme porque passa a idéia de que Jim vivia drogado em orgias. Sim, ele se drogava um pouco, ficava bêbado muitas vezes, mas era uma pessoa divertidíssima e mística. A mensagem dele revitaliza o misticismo e a cultura.
Folha - De que forma?
Manzarek - Ele ainda incomoda. A poética de Jim é um antídoto para esses tempos politicamente corretos. Jim ajuda as pessoas a se recuperarem desse momento restrito da cultura.
Folha - Como você analisa o lado musical do grupo?
Manzarek - Os Doors se basearam em três nomes: o jazzista John Coltrane, o erudito Igor Stravinski e o bluesman Muddy Waters. De Coltrane pegamos o improviso e o uso do ``chorus" repetitivo. Stravinski colaborou com o vigor rítmico. Muddy é evidente. É o blues que nos caracterizou. Estudei piano clássico em Chicago, onde nasci. A música erudita tem muito a ver com os Doors.
Folha - O que você tem feito?
Manzarek - Acabei de gravar o CD ``Love Lion", com recitação de Michael MacLure. Já não toco mais teclado. Dedico-me ao piano e ao trabalho de vanguarda. Eu e Michael vamos sair na semana que vem em turnê pelos EUA.
Folha - Qual a contribuição dos Doors para a cultura pop?
Manzarek - A liberdade em todas as suas formas: política, sexual e religiosa. Jim tem a ensinar a Geração X porque, diferentemente desta, era um rebelde que corria riscos. Hoje em dia os jovens se identificam com três rebeldes americanos: James Dean, Jack Kerouak e Jim Morrison. Os Doors ainda oferecem perigo.

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