São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Quando o Brasil foi à guerra

MARCO CHIARETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há poucos dias, os jornais divulgaram uma pesquisa feita entre estudantes ingleses: um terço deles não sabia quem foi Winston Churchill, o primeiro-ministro que levou o país à vitória contra as forças nazistas do fuehrer alemão, Adolf Hitler. Se perguntarem a um norte-americano onde fica Stalingrado, duvido que a metade acerte.
A ignorância sobre a Segunda Guerra Mundial é um patrimônio da humanidade. Isso porque ela acabou há 50 anos. Só por isso, ``A Nossa Segunda Guerra", de Ricardo Bonalume Neto, colaborador da Folha, já mereceria elogios a partir da capa: escrever a história dos brasileiros na guerra e reduzir nossa ignorância já é um ato louvável.
A Segunda Guerra Mundial começou no dia 1º de setembro de 1939, quando os alemães invadiram a Polônia. Terminou seis anos depois, em 2 de setembro de 1945, quando os representantes japoneses assinaram a rendição incondicional de seu país, no convés de um couraçado norte-americano. Custou 60 milhões de mortos. Milhões. Homens e mulheres do mundo todo vestiram seus uniformes ou foram envolvidos no chamado ``esforço de guerra". Entre eles, brasileiros. É a história desses brasileiros que aparece no excepcional livro de Bonalume.
O assunto é complicado (e delicado). O Brasil é um lugar quase sem guerras (externas), à diferença dos EUA, por exemplo. A última na qual nos metemos é justamente essa, há 50 anos. Não há muitos especialistas em guerra por aqui. Não é tema preferencial de reflexão acadêmica. Nossas memórias sobre a guerra são poucas.
Bonalume está preocupado em reavivá-las. E apesar de citar várias vezes sua condição de jornalista -e não historiador-, o que faz em seu livro não é só uma boa reportagem: é história, e bem escrita. A história dos soldados brasileiros e do Brasil no conflito, a partir das lembranças dos combatentes.
Não se prende a elas. O sujeito entende e muito do assunto. Bonalume não é daqueles que acha que Rokossovski é nome de vodka (era um general russo), ou que Churchill é só um tipo de charuto. Duvido que haja história mais difícil de ser contada do que a da Segunda -e realmente Grande- Guerra. E duvido que alguém que não saiba do que fala possa escrever uma boa história sobre os brasileiros nessa guerra. Bonalume conseguiu.
Logo no começo ele lembra que é um jornalista que trabalha com ciência, com seus cacoetes e manias. Entre essas, uma bendita mania: a precisão. Você sabia que a Marinha Real britânica usou baleeiras adaptadas para combater submarinos alemães? Que esses navios tinham nome de flores?
Que os primeiros navios da esquadra brasileira a patrulhar nossas costas eram ``surdos e mudos": eram incapazes de detectar submarinos inimigos, quem diria afundá-los? Que os uniformes dos primeiros pracinhas tiveram que ser mudados às pressas porque eram quase iguais aos de seus inimigos na Itália, os soldados alemães? Que havia submarinos alemães da classe IX D e outros do modelo IX D2? E que entender a diferença entre os dois é importante para entender o desenvolvimento da luta anti-submarino por aqui?
Reunindo tantos detalhes, percebendo tantas diferenças, o livro consegue fugir do engano fácil da precipitação: generalizar, em história militar, é um pecado muito grave. Aliás, sempre é.
A Força Expedicionária Brasileira foi montada em um país mais do que atrasado -e despreparado para a guerra. Foi para a Itália. Lutou por mais de um ano. Fez o que tinha de fazer. Não há -nem pode haver- grandiloquência nisso. E compará-la com outras forças em combate não é uma piada: é algo sem sentido.
Mas há grandeza no ato de 25.334 homens (sem contar as enfermeiras, os pilotos do 1º Grupo de Caça e o pessoal da Marinha) que simplesmente cumprem seu dever. Bonalume consegue transmitir essa grandeza. Sem usar adjetivos. Sem nos encher de ``heróicos", ``bravos" e ``retumbantes".
Os pracinhas não sabiam nada de guerra moderna. Nem podiam saber. Aprenderam na marra, como os americanos em Passo Kasserine, na África, os ingleses em Dunkerke, ou os próprios alemães (geralmente considerados os guerreiros por definição, o que é uma bobagem) em vários momentos.
Há uma passagem que considero central para alguém que queira conhecer essa guerra: ``Uma das descobertas (dos pracinhas) foi a necessidade de treinamento constante". Quem levava até as últimas consequências a idéia do treinamento para a batalha? Os norte-americanos. Quem ganhou essa droga de guerra? Os norte-americanos.
Treinamento e organização, produção em massa e coragem, propaganda e muita sorte: a falta de um só desses ingredientes afasta da vitória em um conflito moderno. E, em todas as guerras, a única coisa que interessa é a vitória. Os pracinhas foram os primeiros brasileiros a saberem disso. Ouvi-los é uma lição que vai além dos combates. Acho que esse livro faz isso. Ele vê as árvores, faz o mapa da floresta, e se prepara para compreender o caminho do lobo.
Não acho que os brasileiros não tenham tido história militar, particularmente da Segunda Guerra: tiveram, e boa. Há grandes cronistas da guerra, belas análises e críticas consistentes (e às vezes devastadoras). Mas é com ``A Nossa Segunda Guerra" que essa história chega a sua maturidade. Não é pouco.

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