São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Poesia a partir de fragmentos

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

Quando o poeta e dramaturgo Derek Walcott ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 92, a Academia Sueca de Letras elogiou "seus escritos luminosos, que evocam culturas diversas e a riqueza do Caribe" e o "estilo melodioso e sensível" de sua obra.
Ninguém duvida que esse escritor nascido há 65 anos em St. Lúcia -uma ex-colônia britânica nas Antilhas- seja importante.
Mas é também verdade que a Academia Sueca de Letras premiou nos últimos anos sobretudo escritores "exóticos", levando em conta também a posição política ou a etnia dos agraciados.
Foi assim com Derek Walcott, filho de um aquarelista britânico e de mãe caribenha descendente de escravos.
É também o caso do nigeriano Wole Soyinka, premiado em 1986, do russo Josef Brodsky, que recebeu a distinção no ano seguinte e do egípcio Nagib Mahfuz, Nobel de Literatura em 1988.
Professor de literatura e redação na Universidade de Boston (EUA), Walcott foi alfabetizado em "creole" e seus escritos têm forte viés histórico e multicultural.
O autor de "Omeros" (Cia. das Letras) é uma figura de presença simples e luminosa que, além de poeta e autor de peças, se dedica ao jornalismo e à pintura.
Quando ganhou seu Nobel de Literatura -em dinheiro isso quer dizer US$ 1,2 milhão- alguém perguntou como ele se sentia. "Mais rico, mas, por que eu?", respondeu.
Descubra o porquê nesta entrevista exclusiva para a Folha antes de o escritor participar do evento Banco Nacional de Idéias.

A língua do Caribe
Eu figuro entre os primeiros escritores das Índias Ocidentais que escrevem em inglês. Há escritores no Caribe que escrevem em espanhol, em francês e até mesmo em holandês -mas isto não faz de mim um escritor inglês.
A literatura caribenha está se formando separadamente da inglesa. Muitos anos atrás, não havia muitos escritores caribenhos. Quando um escritor caribenho era publicado, era um fenômeno. Hoje já deixou de ser assim.
O impressionante é que, se você pensasse na literatura caribenha sem uma língua específica, apenas como caribenha, como experiência literária, começando por Cuba e descendo até Trinidad, você teria que incluir escritores cubanos, dominicanos, asiáticos, jamaicanos. A literatura caribenha é uma só, mas é multilíngue.
Popular e erudito
Quando escrevo minhas peças, não escrevo apenas peças, mas também canções pop, dentro do contexto do teatro. Acho que existe uma diferença entre a poesia da performance (por exemplo, letras de músicas) e a poesia da reflexão.
A poesia da reflexão, que geralmente é uma poesia de tipo meditativo, é aquela do poeta examinando sua própria inteligência. E não adianta passarmos uma imagem de popular, fingirmos que a inteligência é algo ao qual não atribuímos muita importância.
Alguns escritores fazem de conta que não têm inteligência. Isso é um insulto às pessoas, tratá-las como se a inteligência delas fosse menos privilegiada. Por isso eu não gosto de fazer essa distinção entre a massa e as pessoas com nível de instrução melhor.
O melhor exemplo seria o teatro grego ou Shakespeare, onde o vocabulário não é rebaixado só porque você pensa que está falando para ser ouvido por pessoas pobres. As pessoas pobres têm tanta imaginação quanto você. Portanto, não procuro falar ou escrever de maneira mais simples para atingir pessoas mais simples. As pessoas que pedem para você fazer isso geralmente têm algum interesse oculto -racial, político etc.
Quando olho para uma lista de ganhadores do Prêmio Nobel, sinto um respeito enorme por muitos deles e fico espantado, porque muitas pessoas que mereceriam o prêmio, como Graham Greene, W.H. Auden, James Joyce, não o receberam.
Por outro lado, não posso modificar essa situação. Acho que tenho sorte porque vivo numa ilha pequena e simpática e posso voltar para ela quando quiser, em outras palavras, não preciso ser visto sempre como figura literária, com esse papel a cumprir. E, mesmo quando faço, como agora, conversando com a imprensa, não me sinto realmente à vontade. Eu preferiria estar na praia em Santa Lucia agora, nadando.
Mas não quero menosprezar o Prêmio Nobel -não vou fazer de conta que recebê-lo não significou muito para mim. Certamente mudou minha vida: pude comprar um terreno, coisa que queria há muito tempo, e construir um estúdio. Pude fazer várias coisas com o dinheiro. É um dinheiro considerável, muito dinheiro.
Poesia brasileira
A poesia brasileira que já li, traduzida, é maravilhosa. Li Carlos Drummond de Andrade, na tradução de Elizabeth Bishop -um poema muito curto: ``In those days there were gardens, in those days", começa assim...
Literatura colonial
Com a dissolução do Império Britânico, aconteceu uma espécie de período crítico, com o crescimento e ampliação da literatura inglesa, ou da literatura escrita na língua inglesa, incluindo Austrália, Índia etc.
Existe uma evolução do escritor simultaneamente com a evolução dos países. Tomemos por exemplo Salman Rushdie: ele fala sobre a evolução de uma identidade ligada parcialmente à Índia e parcialmente à Inglaterra. Há uma geração atual de escritores que vivem na Inglaterra, que podem até ter nascido na Inglaterra, mas que falam sobre a experiência de ser ex-colônias vivendo na Inglaterra.
Mesmo pessoas mais jovens do que V.S. Naipaul, mas daquela geração de pessoas vindas de todos aqueles países surgidos após a fragmentação do Império Britânico, o que vimos foram fases diferentes de amadurecimento deles. Quando éramos jovens, na nossa infância, a experiência colonial, e mais tarde um amadurecimento, na adolescência, e mais tarde ainda se tornando adultos e se separando da metrópole. É uma questão política, além da questão biográfica ou autobiográfica, e esses escritores escrevem sobre isso.
História
Com relação à idéia de história, tenho um conceito prático segundo o qual a história se transformou numa espécie de divindade substituta. Pode ser usada para justificar o progresso, em nome da história, em nome de Deus, pode ser usada para expiação, mas isso significa que está sendo usada como divindade, em ambos os casos.
No caso daquilo que chamamos de Novo Mundo, quando nos estamos sentindo bem, ou de Terceiro Mundo, quando estamos nos sentindo para baixo, o que geralmente fazemos é uma penitência da idéia da história como algo perigoso, porque então o que nós fazemos, nesta metade do mundo, nas Américas, é pensar em termos históricos, pensar, por um lado, "nós não temos uma história", como se isso fosse uma perda irreparável, quando não ter uma história é a melhor coisa possível.
Não acredito naquela idéia de que quem não conhece a história é condenado a repeti-la. Acho que essa é uma afirmação de segunda categoria, porque você vai repetir de qualquer maneira, porque você não vai mudar a natureza da humanidade. Você deveria se perguntar se você aprende alguma coisa com a história. Não se aprende nada com a história.
O que se aprende com os combates humanos? Nada. Como você pode afirmar ter aprendido algo com a experiência da Segunda Guerra Mundial, se o que está acontecendo hoje em Ruanda é igualmente terrível.
Se pensarmos a história como algo que precisa dar espaço para os massacres, para tragédias, então evidentemente estaremos dando continuidade a uma concepção ocidental da história enquanto destino, enquanto conquistas.
Fragmentos
Alguém aventou que com meu livro eu estava tentando refazer Homero. Seria uma perda de tempo se eu tentasse refazer Homero. Quem empreenderia uma tarefa dessas? É um livro de referências, de associações, e é isso que vivemos nas Américas. Vivemos a memória fragmentada.
Mas a memória fragmentada pode se tornar uma estética, sabe? Em primeiro lugar, memória completa não existe, então tudo que temos são referências, mas podemos criar uma estética a partir delas. Os fragmentos devem ser vistos como coisas que alimentam possibilidades, que alimentam a imaginação, a renovação. São nossos acessórios, e nós os usamos.
Se meu livro se chama "Omeros" e ninguém sabe como pronunciá-lo, tudo bem. Todo mundo nas Américas teve referências que ou perdeu ou mudou.

Transcrição de CLARA ALLAIN

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