São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Shakespeare e os abismos da vida interior

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muitos de nós conhecem uma experiência de leitura, difícil de descrever ou classificar, na qual se passa de uma imersão prolongada nas peças de Shakespeare para o estudo de algum outro autor, moderno ou antigo.
Mesmo se este autor for um de seus poucos rivais -Chaucer, por exemplo, ou Cervantes, ou Tolstói-, ainda assim tomamos consciência de que sair de Shakespeare envolve uma diferença, em gênero e grau. É uma redução na capacidade de representar o que normalmente se chama de realidade, especialmente a realidade de uma pessoa com a qual se identificar.
A sensação que se tem é de que Shakespeare retrata a interioridade humana não só melhor do que qualquer outro, mas de uma maneira que compartilha, ou chega até a aumentar nossa interioridade.
Minha linguagem, aqui, é impressionista: não demonstra preocupações com materialidade, raça, sexo, história social e todas as outras verdades indubitáveis que me pedem que reconheça como um ``Novo Historicismo", sem o qual nenhum estudo moderno de Shakespeare pode ser politicamente correto.
Mas Shakespeare não era politicamente correto e muito menos ``historicista". Saia você caçando o que houver de vital em dramaturgos como John Marston ou George Chapman, e pode levar seu arco foucauldiano e sua flecha marxista: todo esse zelo não vai evitar que você volte da Floresta de Arden com as mãos abanando.
Seja antiquado, então, como eu, arcaico como o Dr. Johnson no século 18 e William Hazlitt, no 19, e retorne, mais uma vez, às personagens de Shakespeare, verdadeiros abismos da interioridade. Exatamente como elas diferem de outras personagens literárias anteriores e por que continuam acima de todas as outras criadas desde então?
O que há de mais original em Shakespeare é o fato de que suas personagens escutam a si mesmas falando, refletem sobre o que disseram e, com base nisso, frequentemente resolvem mudar e, mais tarde, mudam mesmo. Na Bíblia hebraica, há personagens que mudam, mas não por terem refletido sobre o que disseram. A personagem principal, Javé (``Deus"), transforma-se profundamente no Sinai, e se comporta muito mal no deserto, mas essas não são transformações shakespearianas, como uma comparação com o Rei Lear logo mostraria. Javé é incapaz de se escutar a si mesmo e, portanto, jamais aprende nada, mas permanece sempre violento, sempre imprevisível.
Qualquer escolha entre as personagens de Shakespeare trai algo de subjetivo, mas é senso comum sublinhar o ``wit", a inteligência ou graça superior, heróica, de três figuras em particular: Rosalind, Falstaff e Hamlet. Dessas três, Rosalind é a mais equilibrada, com a percepção mais à altura do que há de pragmático na existência -e claramente mais capaz de chegar à harmonia, ao que o poeta Yeats chamava da Unidade da Vida.
Como Falstaff (nas duas partes de ``Henrique 4º") e como também Hamlet, Rosalind é maior do que a peça que a contém, e restaura nosso senso da realidade esmagadora de uma personagem literária. Talvez seja ela, em todo Shakespeare, a representação mais alta de uma possível personalidade humana. Seu maior rival é Hamlet, mas esse é forte demais para os limites de qualquer contexto e nos ultrapassa tão longe que nem sempre podemos compreendê-lo. Já Rosalind fica mais perto e não requer qualquer mediação entre nós e ela.
Assim como Falstaff e Hamlet, Rosalind dá vazão a uma vontade de potência sobre a interpretação de sua própria peça. Continuamente criando cenas novas e situações cômicas, ela é, como os dois, um dramaturgo, mas, ao contrário deles, jamais voltada para a expressão da própria vontade. Sua ambição é a energia e o contentamento, no sentido bíblico de dar mais vida à vida.
Falstaff tem um combate a vencer, contra o tempo, em primeiro lugar, e contra os interesses do Estado, e sua vontade não tem como não se contaminar desses dois grandes antagonistas.
Quanto a Hamlet, seu grande opositor não é, nem poderia ser o miserável Cláudio, mas sim ele mesmo. Uma das maiores marcas de originalidade do príncipe da Dinamarca é que ele inaugura o grande tropo apropriado por Freud: a guerra civil na psique, em que cada um de nós é seu pior inimigo. Existe uma espécie de luta em nossos corações, que não nos deixa nunca adormecer, mas o coração de Rosalind é outro.
Heroicamente livre do instinto de morte, Rosalind repudia qualquer insinuação de sadismo com sua graça espantosa -talvez, em toda literatura ocidental, a única forma de ``wit" que tem um núcleo de afeto.
Quantos de nós, sofrendo as agonias da paixão, correspondida ou não, encontram consolo na sabedoria amena de Rosalind: ``Men have died from time to time, and worms have eaten them, but not for love" (De tempos em tempos morrem homens, e os vermes vêm comê-los -mas não morrem de amor). É uma sentença que compete com várias de Falstaff pelo prestígio de ser a melhor da língua inglesa.
Tão apaixonada quanto qualquer outra em Shakespeare -isto é, no que chamamos de realidade-, Rosalind ensina a Orlando, a si mesma e à platéia os limites do amor. A menos marloviana de todas as personagens teatrais, Rosalind se alia à troça geral de Marlowe que se pode escutar, estranhamente, ecoando no texto inteiro de ``As You Like It".
É ele o espírito de negação rejeitado pela peça e o ceticismo gentil de Rosalind é uma cura para o que, em Marlowe, é a erotização ovidiana dos fracassos e acidentes humanos sob forma do instinto de morte. Assim como ``Noite de Reis" é uma comédia escrita, em parte, contra Ben Jonson, ``As You Like It" dramatiza uma polêmica implícita contra as hipérboles do desejo em Marlowe.
Há alguma coisa de Rosalind em Emily Dickinson e foi essa quem nos deu uma boa expressão para descrevê-la: ``adequate desire" (desejo adequado). O mistério de Rosalind está centrado sobre o espantoso equilíbrio concedido a ela por Shakespeare.
Como descrever um intelecto que acredita em si mesmo tanto quanto na linguagem? Hamlet, que não tem fé em nenhum dos dois, fica além da nossa medida e necessita, assim, da mediação do amor de Horácio. Mas não há ninguém para mediar nossa relação com Rosalind, exceto talvez Touchstone e Jacques, duas figuras rançosas, que só o fazem por negação.
Tudo o que Rosalind quer é que sua vontade não seja violada, nem usurpada; ela não exerce nenhuma vontade de potência sobre os outros. Ela é a ancestral de uma grande tradição de heroínas ficcionais da Vontade Protestante, que inclui a ``Emma" de Jane Austen.
Essa tradição, que vai da Clarissa Harlowe de Richardson (no século 18) até Austen, George Eliot e Meredith, tem seus representantes americanos em Hawthorne e Henry James, e reverberações nas heroínas da E.M. Forster e Virginia Woolf, e nas irmãs Brangwen de D.H. Lawrence.
Todas elas concentram-se, como Rosalind, em oferecer e receber estima, uma espécie de troca muito diferente da retórica de combate em Marlowe, onde o que está no centro é a vontade de potência sobre a alma dos outros. A inteligência, ou ``wit" de Rosalind é heróica porque luta contra toda e qualquer qualidade ofensiva, capaz de comprometê-la ou rebaixá-la.
Por algum motivo, Shakespeare decidiu que suas maiores encarnações da negação e do ``wit" jamais ficariam juntas no palco. Pode-se imaginar o que não seriam alguns desses confrontos: duelos do intelecto entre Iago e Falstaff, ou entre Edmundo e Hamlet. Mas é impossível imaginar Rosalind no universo dos grandes vilões de Shakespeare, e não só porque está na Floresta de Arden.
As formas de sua liberdade são as de uma personalidade plenamente resolvida, modelar: madura, sem malícia, sem precisar voltar a agressividade contra os outros, nem contra si mesma. Nenhuma outra figura, nem mesmo em Shakespeare, domina de tal maneira o ``wit" e ao mesmo tempo tem tão pouco interesse no poder, que o grande ``wit" sabe conquistar quando quer.
Ninguém, seja em Shakespeare ou qualquer outro autor, é tão livre de ressentimento, sem perder todos os talentos naturais da curiosidade, da vitalidade e do desejo. É sempre com gosto que cada um de nós a recebe em sua companhia, porque nenhuma outra presença literária é tão refrescantemente natural e nenhuma insiste tão pouco como ela em apropriar-se do mundo para si.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

Texto Anterior: Poesia a partir de fragmentos
Próximo Texto: Uma crônica policial da máfia siciliana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.