São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Uma crônica policial da máfia siciliana

ANDREA LOMBARDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Dia da Coruja, de Leonardo Sciascia (1921-1989) teve, à época de sua publicação (1961), enorme repercussão na Itália: um milhão de cópias vendidas e, após alguns anos, um filme de sucesso de Damiano Damiani (1968). No Brasil, já chegou a sua segunda tradução (a primeira foi pela editora Fontana, em 1981).
O que tem este livro de tão cativante? Exatamente algo que contraria a advertência do próprio autor: ``Inútil dizer que não há, no conto, personagem ou acontecimento que corresponda, a não ser casualmente, a pessoas ou fatos reais. De fato, ele foi lido, nos anos 60, por leitores ávidos por engajamento social, exatamente pelo motivo contrário: uma denúncia do fenômeno da Máfia.
O pano de fundo do enredo baseia-se num fato realmente ocorrido: o assassinato, em 1947, de um sindicalista comunista, com envolvimento da Máfia. O protagonista de ``O Dia da Coruja" é um honesto e corajoso oficial dos ``carabinieri" (um policial militar, portanto) de um pequeno vilarejo no interior da Sicília, que empreende sozinho, contra a hostilidade e o silêncio da população, uma luta contra a influência da organização criminosa siciliana.
``A natureza imita a arte", diz o narrador. Difícil, realmente, não ver, com os olhos dos leitores da década de 90, o ``capitão Bellodi" como uma surpreendente antecipação da figura do juiz Antonio Di Pietro, da equipe de juízes da Operação ``Mãos Limpas".
Seu adversário, no texto, é um líder mafioso, cujo padrinho político, na distante capital Roma, recebe no livro o codinome de ``Sua Excelência": uma personagem que hoje nos remete imediatamente a Giulio Andreotti, político italiano atualmente sob processo por envolvimento com a Máfia.
O entrelaçamento entre poder político e corrupção foi o tema forte de Sciascia. Com ``A Cada Um o Seu" (1966), ``O Contexto" (1971) e, finalmente, ``Todo Modo" (1974), ele perseguiu o gênero policial, ou melhor, uma espécie de ``livre-vérité".
``Como autor de `Todo Modo' -declarou após o sequestro e assassinato do premiê Aldo Moro, em 1978-, vejo na realidade uma projeção das coisas imaginadas. Como escritor, sinto preocupação e desconcerto em ver que as coisas imaginadas se verificaram".
Mas, na riqueza de seu texto, encontra-se também sua pobreza: o livro (brevíssimo, 112 páginas), lê-se como um artigo de crônica policial -sua principal qualidade. O realismo, porém, perdeu atualidade. As imagens da Sicília soam francamente estereotipadas (``A Sicília: misteriosa, implacável, vingativa); os nomes soam quase ridículos, de tão previsíveis: ``Saro Pizzuco", ``Ciccio La Rosa"...
O que incomoda o leitor de hoje é a necessidade do texto conter todas as variações do estereótipo mais corriqueiro e grosseiro da ``sicilianidade", como a questão dos "chifres e do código de honra -algo que, embora seja posterior, já nos parece ultrapassado pelo magnífico filme de Germi, ``Divorzio all'Italiana", interpretado por Marcello Mastroianni.
As metáforas são, no mínimo, triviais (``A mulher explodiu da cama nua e extremamente bonita; costumava ir para a cama como uma atriz famosa, vestindo apenas Chanel nº 5...").
Finalmente, a preocupação do autor em estabelecer para si uma genealogia literária e política parece francamente ingênua: as citações de Verga e Pirandello, ou do autor de ``O Leopardo" (Tomasi di Lampedusa), são excessivas neste romance tão breve.
Se não se tratar de uma obra-prima, este livro pode ao menos ser considerado o documento fidedigno de uma Itália problemática e ingênua, engajada e corrupta, capaz de momentos de verdadeira indignação -um texto que mostra todos os precoces sinais de seu envelhecimento e que, talvez por isto, nos deixa um sabor de saudade.
O próprio narrador, num trecho em que apresenta um involuntário ``mis-en-abime", parece perceber estas falhas e declara: ``Queremos ver as coisas do ponto de vista daquele colega seu que escreveu um livro sobre a `Máfia' que é um disparate tamanho que eu jamais poderia esperar alguma coisa assim de um homem responsável".

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