São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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A TEORIA QUE SAIU DO FREEZER

VINICIUS TORRES FREIRE; FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 28/06/95
No Mais! de 28/5, à pág. 5-4, está errada a legenda que indica que o Boeing 707 está no aeroporto de Congonhas. O avião está, na verdade, no aeroporto de Viracopos.
A TEORIA QUE SAIU DO FREEZER
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Um conjunto de idéias que parecia morto e arquivado numa gaveta da história intelectual brasileira de esquerda e um conjunto de problemas frescos e ainda sem desfecho claro à vista, respectivamente a ``teoria da dependência" e a mundialização da economia capitalista, estão formando um círculo de fogo em torno da carreira do presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Entre 1965 e 1966, FHC e o sociólogo chileno Enzo Faletto sintetizaram em ``Dependência e Desenvolvimento na América Latina" o problema de como uma economia periférica poderia se desenvolver de modo capitalista mesmo que dependente, e, portanto, de certa forma subordinada, aos países centrais desenvolvidos.
Segundo FHC e Faletto, a possibilidade de desenvolvimento seria dada pela relação de interesses nacionais, de classes em disputa, com a economia internacional. No caso do Brasil, as condições econômicas e políticas para tanto estavam ``dadas".
Hoje, como presidente, FHC teria que resolver o problema de como inserir da maneira menos dolorosa possível a economia brasileira na mundial, tema que formulou de maneira mais ou menos original há 30 anos como sociólogo.
A ameaça de devastação social ou de marginalização econômica nacional trazida pela internacionalização faz com que comece a ser repensado o método analítico de FHC, que, por sua vez é, ele mesmo, analisado por intelectuais adversários e partidários como um ``presidente filósofo" de fatura intelectual dependentista (termo que FHC diz detestar). Para estes intelectuais, a bomba teórica da dependência estoura agora como problema eminentemente prático na mão do presidente. Estamos assistindo a uma síntese entre teoria e prática ou diante da imagem do escorpião encalacrado, dependendo das preferências do espectador.
O problema teórico, que envolve questões como o que fazer de parte da indústria e dos empregos do país e das estatais, também já aparece nas manifestações antiprivatistas, em manifestos de empresários de tecidos contra a abertura à concorrência de tigres asiáticos e até mesmo nas filas do gás, escasso devido à greve dos petroleiros que se batem para preservar um símbolo do desenvolvimento industrial nacional, a Petrobrás.
Caráter afirmativo
O problema da passagem coerente da obra do intelectual à opção estratégica do político apareceu com toda a força na conferência de encerramento do ciclo sobre o ``marxismo ocidental", realizado no último dia 19 na antiga Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia, em São Paulo.
Ali, o filósofo Paulo Arantes, da USP, expôs pela primeira vez em público o esboço de um ensaio que está escrevendo sobre a questão ``o que é a esquerda hoje?". O fio condutor da análise foi a trajetória de FHC, que, como disse Arantes, citando uma definição forjada pelo crítico literário Roberto Schwarz, ``concentra na sua figura todo um processo social".
FHC teria pensado sua inserção na política desde o início nos seguintes termos: se a nossa análise do capitalismo brasileiro está correta, a revolução está fora de cogitação, é loucura, e o que pode haver é um desenvolvimento dependente e associado. Então, a força que eu, Fernando Henrique, acumulei como intelectual vai servir para negociar com a direita.
Para se entender essa opção política, diz Arantes, é preciso voltar à teoria da dependência. Segundo ele, sua formulação é tributária de uma leitura ``industrializante do marxismo", isto é, mais preocupada em resolver os impasses do desenvolvimento brasileiro do que em fazer a crítica geral do capitalismo.
``A dimensão crítica da teoria da dependência é altamente ambígua, permitindo sem nenhuma violência, uma leitura com sinais trocados. O seu caráter afirmativo é muito mais preponderante que sua necessária carga crítica", diz Arantes.
Ao tomar conhecimento dos comentários de Arantes sobre o caráter ``afirmativo" (leia-se acrítico) das idéias de FHC, Brasílio Salum, sociólogo e cientista político da USP, sorri e diz que se trata de ``um equívoco intelectualmente provocativo".
Segundo Salum, o padrão de desenvolvimento pensado por FHC manteve-se por muito tempo, mais de duas décadas, mas estava vinculado à idéia de um Estado nacional e a um projeto de capitalismo nacional.
``Mas, em meados da década de 70, novas relações no mercado mundial fazem com que seja ultrapassada a possibilidade de controle do espaço nacional, que é erodida e perde o sentido. O problema passa a ser: como inserir o Estado nacional em um espaço mundializado cada vez mais estreito. Além disso, a nova forma de dependência ultrapassa o relacionamento entre nações -o dinamismo do mercado transnacional é muito mais forte do que os próprios países centrais", diz.
O sociólogo observa, que deste modo, o projeto de FHC se vê às voltas com a necessidade da integração de forma competitiva à economia mundializada, mas não através da afirmação nacional. ``Isso já era sabido, ainda que de forma fragmentária e localizada desde meados dos anos 80. O BNDES tinha um programa de integração competitiva, o Sarney começa a pensar na saída Mercosul, por exemplo", diz.
Para Salum, atribuir a FHC a intenção de promover uma política neoliberal devastadora não passa de retórica do jogo político. ``No programa de FHC, me parece que o Estado permaneceria condutor, mas em outros termos, não mais como empresário. Seria um Estado concedente, que passaria a regular o desenvolvimento. Quer-se apenas, agora, dissociar o Estado das estatais. Você terá ainda um Estado à frente do desenvolvimento, mas diferente. Através da retomada de sua capacidade de regulação é que se daria a nova inserção".
Teoria na sombra
Este debate ``mundializado" que reaparece no cenário brasileiro esteve durante um bom tempo na sombra, praticamente abandonado. Marginalizado no final da década de 70 e ao longo dos anos 80, quando a economia brasileira parecia ter alcançado um grau de autonomia em seu desenvolvimento e as discussões centravam-se na gestão da política econômica, o assunto volta ao debate no cruzamento da oportunidade -seu teorizador é o presidente do Brasil- com a necessidade.
``Nossa estrutura industrial é incapaz de garantir o dinamismo da economia e nosso padrão de financiamento é incapaz de financiar uma tranformação dessa estrutura industrial suficiente para garantir um dinamismo", diz a economista Lídia Goldenstein.
As causas deste ``breque" e dos motivos que levaram intelectuais brasileiros não o compreenderem foram historiados e formulados por Goldenstein, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em ``Repensando a Dependência", onde procura retomar as questões do relacionamento dos Estados nacionais, a economia internacional e o desenvolvimento econômico.
Lançado este ano, o livro é um dos sinais evidentes de erupções e da volta a atividade de vulcões extintos, ainda que o debate não se estenda nestes termos a representantes tão importantes da economia brasileira como o ex-ministro Mário Henrique Simonsen: ``Não posso fazer uma crítica ou nem ao menos repensar este problema. Simplesmente não conheço, eu não me preocupo com estes temas, não li os trabalhos", disse ele à Folha.
Inteiramente familizarizado com o tema, ao contrário de Habermas, o economista Celso Furtado distingue as suas idéias sobre o subdesenvolvimento do debate sobre a dependência e solta uma farpa na direção de FHC. ``O conceito de dependência foi vulgarizado nos anos 60 por sociólogos latino-americanos e só indiretamente se liga à teoria do subdesenvolvimento. Minhas idéias, formuladas nos anos 50, implicavam em perceber a nossa história contemporânea como expressão tardia de um processo de industrialização sob o controle de empresas transnacionais", diz Furtado.
Para Goldenstein, na formulação da dependência feita por FHC e Faletto perdeu-se ``de vista uma análise de movimento geral do capitalismo internacional". O vício de origem se transmitiu a pensadores posteriores, economistas especialmente, próximos à ``teoria da dependência", apesar da ilusão ter sido compartilhada também por economistas considerados de direita.
A ilusão seria a de considerar como que estabilizada a possibilidade de desenvolvimento capitalista auto-sustentado no Brasil, interpretação derivada das idéias de FHC de que o capitalismo brasileiro teria chances ilimitadas de crescimento, associado aos países centrais. Os possíveis limites desta expansão seriam políticos, dizia o sociólogo FHC.
Mesmo quando os anos do crescimento acelerado foram interrompidos pela crise como a da dívida externa esta foi vista como ``passageira", um simples problema de opção de política econômica.
``Bastaria aplicar a política correta para que o país voltasse a sua rota de crescimento". O problema do desenvolvimento tornara-se um problema de gestão, de administração interna. Também para a esquerda e para os críticos do modelo, ``ninguém segurava este país", diz Goldenstein.
Coisa semelhante sustenta Paulo Arantes: ``Entre meados do governo Figueiredo e meados do governo Sarney a questão da dependência desapareceu do debate brasileiro. E ninguém percebeu isso. As pessoas continuaram a discutir teorias inócuas sobre a inflação, como se o problema se resumisse à administração de políticas econômicas mais equitativas, já que, como se dizia então, a nossa planta industrial já havia se completado no governo Geisel".
O problema, afirma Arantes, é que ``já em meados dos anos 70 e sobretudo a partir dos anos 80 estávamos na contramão de uma nova reorganização produtiva do capitalismo mundial", cujos traços fundamentais são uma brutal concentração tecnológica nos países do Primeiro Mundo, a ``financeirização" da riqueza e o chamado desemprego estrutural.
Esta perda de capacidade de tocar o próprio desenvolvimento, que se traduziria, mas não seria percebida como tal, na ``década perdida" posterior ao ``milagre", seria uma crise derivada de uma grande mudança do capitalismo mundial.
Esta avaliação também é compartilhada por Goldenstein e por economistas como João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, da Universidade de Campinas e principais intelectuais ligados a Orestes Quércia, do PMDB.
Os setores de ponta e de base da economia, os que possibilitam um desenvolvimento autônomo, passam a depender de investimentos paquidérmicos em novas tecnologias, eletrônicas especialmente, o que concentra enormemente o capital nos países centrais e dificulta aos países periféricos, pobres, dependentes, ou subdesenvolvidos, a possibilidade de abocanhar pedaços destes instrumentos de ativação da economia.
A perda da dimensão do relacionamento com a economia mundial, frisada como necessária nas disposições metodológicas de FHC e Faletto eliminou a possibilidade de pensar corretamente a nova relação de dependência e, por conseguinte, no caso brasileiro e periférico em geral, das possibilidades de desenvolvimento. Seria preciso ``repensar a dependência".

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