São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Ainda a "teoria" da dependência

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Recentemente, preparei um texto sobre as questões do desenvolvimento e da dependência para ser lido em Washington, no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Embora tivesse preferido, na ocasião, entremear as reflexões que havia escrito com muito de improviso para adaptar-me às demandas do auditório, não deixei de expor as linhas centrais dos argumentos que escrevera.
Quais foram eles?
Em primeiro lugar, a reafirmação de que, nas ciências sociais, os conceitos são historicamente densos. Quer dizer: eles precisam redefinir-se sempre que ocorram alterações de alcance estrutural nas relações sociais.
Assim, as novas dimensões (ecológicas e até éticas, por exemplo) enriqueceram as noções do desenvolvimento.
O mesmo ocorre com a noção de dependência. Apesar das referências seguidas a mim e a Faletto como autores pioneiros da "teoria da dependência, desde os anos 60 eu me recusava a dar às várias análises sobre "situações de dependência o caráter de "teoria geral da dependência, com "leis próprias etc.
Nossa ambição sempre foi mais modesta: dentro da análise geral do capitalismo, tentávamos mostrar que as relações entre centro e periferia haviam mudado. Ou seja, em oposição às visões deterministas que uniam a teoria do imperialismo à impossibilidade do desenvolvimento capitalista nos países periféricos, descrevíamos as novas relações de dependência que permitiam a industrialização das economias subdesenvolvidas.
Esta era a novidade da nossa visão sociológica e econômica. Por outro lado, enquanto sociólogos, colocávamos ênfase na dinâmica interna dos países subdesenvolvidos. Dizíamos que as relações econômicas eram também políticas e, naturalmente, sociais. Em vez de repetir que havia barreiras, impasses e impossibilidades de desenvolvimento, dizíamos que havia -dependendo das opções políticas e de surgirem atores sociais novos- oportunidades de desenvolvimento econômico, apesar da relação geral de dependência.
Nos anos 70, desenvolvi melhor a nova forma de relacionamento entre centro e periferia através do conceito de desenvolvimento dependente-associado e passei a interessar-me, crescentemente, pelas opções políticas que levariam a situações de maior liberdade de escolha, a começar pela quebra do autoritarismo e, mais tarde, pela existência de novas formas de desenvolvimento econômico e social. Neste ponto, critiquei, amplamente, o estatismo e o que chamei de "burguesia de Estado, ou seja, a burocracia econômica herdeira do autoritarismo político e filha dileta dos monopólios oficiais.
Nesta linha de continuidade de pensamento e não de ruptura, continuei, como continuo, a fazer minhas reflexões.
O texto que apresentei em Washington faz referência agora a um outro desdobramento do capitalismo contemporâneo. Elaborando idéias que apresentei na Cepal, na última visita que fiz a Santiago, procurei mostrar que a "interdependência contemporânea levou tanto as economias em desenvolvimento quanto as já desenvolvidas a se tornarem "dependentes da novíssima forma de atuação do capital financeiro especulativo: o mercado de derivativos e os fluxos de "hot money".
Apenas indiquei o problema (leia a seguir a conferência) porque, infelizmente para mim, não me sobra mais tempo para o gosto (que mantenho) para as especulações acadêmicas. Devo dedicar-me à árdua tarefa de criar condições mais práticas para lidar com estes fenômenos emergentes que têm efeito direto sobre as economias de hoje, as nossas e as "deles, dos países desenvolvidos.
A conferência
É para mim motivo de satisfação poder encontrar-me com um público como o que hoje se reúne aqui, voltado não apenas para a reflexão, mas também para a formulação de estratégias de ação. Reconheço, no auditório, alguns amigos de longa data da vida acadêmica, o que traz particular alegria.
Penso que tenho alguma familiaridade com o tema que gostaria de abordar hoje, o desenvolvimento como a mais política das questões econômicas. E desculpem-me se vou iniciar minhas palavras com uma autocitação. Mas verão que, neste caso, não é um tributo à vaidade, mas um recurso meramente analítico.
Um dos livros que escrevi e que tentava sintetizar uma versão da "teoria da dependência se intitulava "Dependência e Desenvolvimento na América Latina. A dimensão "desenvolvimento, que eu ali abordava, acabou ficando esquecida. Naquele momento, em meados da década de 60, a "teoria do desenvolvimento se identificava com teses funcionalistas que o meu ensaio com Enzo Faletto criticava. Assim, até para deixar clara a contraposição, os analistas se concentraram no aspecto "dependência, já que essa era a novidade, a contribuição específica dos pesquisadores latino-americanos para a reflexão sociológica.
Não vou, aqui, propor um "aggiornamento da teoria. Ela teve, em determinado momento, importância justamente por esclarecer limites e possibilidades, bem como as características do desenvolvimento latino-americano. Meu objetivo é mais simples: procurarei fazer um exercício comparativo para mostrar o que mudou na perspectiva de desenvolvimento entre os anos 60 e os dias de hoje.
É claro também que não falarei simplesmente como um analista preocupado com os rumos do processo latino-americano, como fazia nos anos 60. Para mim, o desenvolvimento se transformou hoje em uma série de questões concretas, está incorporado a um processo político. Nos anos 60, perseguia mais a precisão analítica; agora, esse ainda é um objetivo, só que vinculado a opções que envolvem custos avaliados criticamente pelos setores sociais.
Minha trajetória, primeiro como intelectual e depois como político, ensinou-me que talvez o mais difícil dos problemas de Estado é fazer com que a melhor reflexão esclareça efetivamente opções. Refletir sem sensibilidade para o real leva à esterilidade. Como dizia Weber, "politics is made with the head, but not with the head alone. Agir sem o cuidado de esgotar o exame das opções possíveis e suas consequências seria, no meu caso, pecar contra Weber, contra a ética da responsabilidade. Enfim, o que aprendi é que a eficácia da gestão governamental está firmemente condicionada pela qualidade das idéias em que se inspira.
O conceito
Volto ao meu exercício comparativo. E um primeiro tema é, precisamente, o próprio conceito de desenvolvimento. Na década de 60, talvez o desenvolvimento se identificasse essencialmente com o progresso material, com o crescimento econômico. A análise de suas implicações tinha uma certa simplicidade: admitia-se que era o centro do processo social. Para alguns, o progresso material levaria espontaneamente à melhoria dos padrões sociais. Para outros, os "dependentistas, a relação era mais complexa. O jogo político intervinha e, em função das formas pelas quais se organizava, o crescimento tomaria rumos diferenciados, com efeitos também diferenciados na estrutura social.
Hoje, observo dois fenômenos paralelos. Em primeiro lugar, o desenvolvimento parece um processo fragmentário. Deixa de ter a força fundadora e unificadora que tinha nos anos 60. Isto leva a uma multiplicação conceitual, nem sempre fácil de seguir. Fala-se de desenvolvimento sustentável, de desenvolvimento social, como agora em Copenhague, de desenvolvimento humano, de desenvolvimento com equidade.

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