São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Ainda a "teoria" da dependência

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Ainda que, nesta tendência, haja o risco de se tomar o parcial pelo geral, acredito que ela constitui claramente um ganho. O crescimento da economia passa a ser entendido como um elemento de um processo maior, e os resultados que produz não se traduzem automaticamente em benefícios na área ambiental ou social.
Aliás, a reflexão sobre o problema ecológico é um dos fatores que desfez a simplicidade da hipótese original. De fato, percebeu-se, mesmo nos países desenvolvidos, que o simples crescimento trazia problemas reais, que colocariam dificuldades para "sustentar o progresso. Ou, ainda mais precisamente: era fundamental pensar sobre a natureza do desenvolvimento que queremos.
De outro lado, as experiências autoritárias na América Latina mostraram também o descompasso entre o crescimento e a equidade. Os padrões de distribuição de renda se deterioraram em alguns casos. Ficou patente que as políticas de desenvolvimento devem ser estruturadas por valores que não são apenas os da dinâmica econômica.
Modos de inserção
Um segundo tema articulado pela "teoria da dependência era a influência dos modos de inserção internacional dos países sobre as modalidades concretas de desenvolvimento. É, na teoria, a dimensão mais original, a da dependência propriamente dita. Aqui, também, a comparação entre os anos 60 e os 90 é interessante. É evidente que, nos últimos 30 anos, o capitalismo se tornou muito mais complexo. O fenômeno da globalização, que víamos, nos 60, mais no plano da produção, com a expansão das empresas multinacionais, agora se ampliou de maneira
extraordinária, especialmente no campo financeiro. Não preciso citar as cifras, bem conhecidas, do movimento das bolsas internacionais em um só dia.
Então, os países agora são mais "dependentes do que ocorre no mundo, não só na definição de seus projetos de desenvolvimento, mas na própria gestão cotidiana da economia nacional. Uma diferença significativa é, porém, a que nasce do fato de que, em escala variada, os fenômenos de globalização não escolhem a identidade dos "atingidos. Assim, tanto os desenvolvidos quanto os países em desenvolvimento ganham e perdem com a globalização. Dou um exemplo: a necessidade de criar "defesas em relação ao jogo especulativo das moedas não é uma necessidade exclusiva dos países em desenvolvimento. Se os fluxos de capital são disputados por países ricos e pobres, já que flutuam em obediência exclusiva às oportunidades de ganhos de curto prazo, todos encontram aí um nítido ponto de encontro de interesses. A comunidade internacional tem interesse comum em dotar-se de mecanismos para, ao mesmo tempo, combater os efeitos adversos da globalização e preservar as possibilidades, que a globalização encerra, de geração de maior riqueza em escala internacional.
Um outro dado contemporâneo é o de que imaginávamos que a dependência fosse um fator homogeneizador das possibilidades dos países em desenvolvimento para sair de sua condição de pobreza. Haveria, lembro, diferenças nas possibilidades de crescimento basicamente em função do controle do processo de acumulação de capital. Mas, em sua essência, os capitalismos central e periférico se afastavam. Mesmo que um país periférico crescesse -e meu livro foi controvertido porque admitia a simultaneidade da dependência e do desenvolvimento-, o faria de forma distorcida. Era como se condição periférica se tornasse fatal, um destino de injustiça.
Hoje, sabemos que isto não é verdade. Países que souberam gerenciar suas economias com sensibilidade para as transformações dos modos de produção do capitalismo e para as questões sociais tiveram rumos mais favoráveis do que outros. O caso dos tigres asiáticos é notório. O que restava de "determinismo, talvez um resquício de marxismo vulgar na teoria da dependência -e eu fui crítico do determinismo- certamente terá que ser fundamentalmente reformulado. O grau de influência da escolha política sobre a estrutura da economia é maior do que nos parecia nos anos 60.
Vista em perspectiva histórica, a situação é paradoxal. Os efeitos da globalização parecem aumentar, de forma indiscriminada, a dependência, ao mesmo tempo em que as condições se ampliam para que a maior inserção internacional possa trazer benefícios em função de escolhas certas pelas sociedades nacionais. A sensibilidade para o internacional passa a ser um requisito indispensável do político moderno. De outro lado, a própria feição estruturante da globalização exige que esta sensibilidade se volte para as questões de longo prazo. Mais do que nunca, as opções de política econômica devem ser feitas com visão de futuro. Os estímulos que dermos hoje serão decisivos para definir, no longo prazo, as possibilidades de progresso.
Modos de produção
Continuando a minha comparação, tocaria, agora, nas consequências da terceira revolução industrial para as sociedades. Quando escrevi, já era claro que um fator central para o desenvolvimento era a capacidade de acumulação de conhecimentos científicos e tecnológicos. Talvez a visão fosse ingênua, pois não se anteviam ainda, com clareza, os problemas derivados do progresso. Ou melhor, não se anteviam na gravidade que vieram a ter.
Falo, especialmente, do desemprego, que se tornou o nó da problemática social dos países desenvolvidos, e gera, para os países em desenvolvimento, problemas agudos. Na realidade, vivemos, em países como o Brasil, o problema do desemprego derivado da modernização e, ao mesmo tempo, o que nasce simplesmente do atraso, da falta de oportunidades. Para encaminhar o problema, a agenda é abrangente. Existem políticas de educação e compensação social. Portanto, insisto, requer uma definição clara da sociedade que queremos.
O problema do Estado
Nos anos 60, tínhamos uma crença, ainda forte, na capacidade que o Estado tinha de moldar o progresso. Era promotor, estimulador, e, acima de tudo, uma força potencialmente autônoma. Para muitos teóricos da dependência, a solução só viria através da exacerbação das atribuições do Estado e, no limite, o próprio socialismo.
Hoje, esta visão se modificou radicalmente. Nos anos 80, a identidade positiva Estado-desenvolvimento se dilui e o Estado passa a ser visto quase como um obstáculo ao progresso. Não é só a ideologia neoliberal que ganha uma hegemonia temporária. Mais do que isto, é a própria falência material do Estado, tanto em países ricos, quanto pobres, que leva a um esforço de reforma que não pode ser modelado ideologicamente. Aliás, um outro dado fundamental nasce da falência dos modelos ideológicos. O Estado tem que resolver problemas concretos, com os meios concretos de que dispõe.
O segredo da boa divisão de tarefas com a sociedade não pode nascer de uma fantasia ideológica, mas de compromissos negociados, fundados em consenso. Caso contrário, não serão efetivos. O Estado é ator fundamental, mas seu papel muda. Porque tem meios mais limitados, o que fará deve ser cuidadosamente escolhido. De novo, um paradoxo: até porque terá que escolher, tendo menos instrumentos a sua disposição, as ações do Estado tornam-se mais relevantes socialmente.
O fim da Guerra Fria levou a uma transformação nos próprios padrões nos quais os modelos de desenvolvimento vão buscar a sua legitimidade. Já não se trata da boa aplicação de uma ideologia, mas de uma combinação complexa entre valores de moralidade, justiça, bem-estar e sua realização efetiva.

Continua à pág. 5-6

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