São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ainda a "teoria" da dependência

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

A teoria da dependência nasceu no contexto autoritário; a democracia muda de forma radical a equação da dependência
Não se pode desguarnecer o Estado, o problema é reforçá-lo para ampliar a margem de opção sobre o sistema internacional

Continuação da pág. 5-5

As ideologias, sobretudo quando se encontravam em confronto, como nos anos 60, permitiam uma atitude, às vezes perversa, de deixar ao futuro a demonstração de que os problemas sociais poderiam ser solucionados. Explico melhor: se ideologicamente a escolha é "correta hoje, estaria garantido o sucesso do projeto amanhã. Infelizmente, sabemos que os sucessos antecipados levaram a ilusões sobre a performance real de várias economias nacionais, que terminaram em colapso.
Talvez o ponto crucial da diferença entre os anos 60 e os 90 na América Latina seja a questão do regime político. A teoria da dependência nasceu no contexto autoritário. A análise se sustentava no exame de como os países se inseriam no capitalismo internacional no marco autoritário. Este levava ao desenvolvimento desequilibrado, desatento às necessidades sociais reais do povo. A democracia muda de forma radical a equação da dependência.
Nos anos 60, era clara a oposição entre autoritarismo e democracia. Para nós, intelectuais naquele momento, a luta política fundamental objetivava o fim das limitações aos direitos civis e políticos. Supúnhamos que a democracia traria, quase como efeito automático, a melhoria das condições sociais do povo. Afinal, no plano teórico, admitíamos que os regimes autoritários constituíam um fator de distorção do crescimento.
Hoje, duas percepções novas se formam. Em primeiro lugar, já não acreditamos que a democracia se resuma a um conjunto de leis, a uma moldura institucional. Continuam pressupostos essenciais da vida democrática. Sabemos, porém, que a democracia deve estar enraizada nas práticas sociais, tornar-se, à Tocqueville, identificada com a própria cultura de um povo. Penso que, no Brasil, estamos chegando a esse estágio, que traz enormes complexidades ao processo de governar, sobretudo em uma sociedade ainda plena de contrastes como a brasileira.
Diria que existe, de um lado, uma multiplicação dos atores que participam com vigor no processo de articulação de demandas. O campo político se amplia e passa a incluir, além dos partidos, as organizações não governamentais -que proliferaram de forma extraordinária no Brasil-, a imprensa, que exerce um vigoroso papel crítico, os sindicatos e suas centrais, os grupos empresariais, as comunidades.
Esse fato traz consequências para a própria natureza do processo democrático. O diálogo democrático clássico entre o Executivo e o Congresso, balizado pelo Judiciário, se transforma e passa a ser um complexo jogo de equilíbrio entre as exigências da negociação política, as demandas sociais, organizadas em torno de temas fortes, como direitos humanos, meio ambiente, direito dos índios, e a pressão dos meios de comunicação de massa.
De certo modo, o ambiente político é fortemente influenciado pela mídia, que trabalha com acontecimentos, com exigências de resultados diários, e as ações governamentais, sobretudo na área social, cujos resultados só se alcançam no longo prazo. A tensão é permanente e rica. Uma das consequências é a de que os governos erram menos, tão forte e tão variado é o escrutínio da sociedade. Também se compreende que é impossível realizar a "democracia sem que se estabeleçam parcerias criativas: para governar, entre o Estado e a sociedade; para produzir, entre o Estado e o empresariado; para levar adiante as demandas sociais, entre o Estado e as organizações não governamentais; para aperfeiçoar as condições de trabalho, entre o Estado e o sindicato.
Não temos mais a ilusão de classes sociais que liderassem unilateralmente o processo de desenvolvimento. Hoje, o desenvolvimento é problema que obriga à mobilização social ampla.
A democracia não "resolve os problemas sociais, mas é uma condição necessária para encaminhá-los. A idéia de "transparência não significa mais do que isto: a sociedade se conhece melhor, conhece melhor suas mazelas e dificuldades e, também, a capacidade efetiva de se transformar. As utopias ganham sentido realista. A vontade de transformação ganha contornos mais claros. Não nasce mais de um desígnio inexorável da história; nascerá do duro e cotidiano embate dos homens e das mulheres.
A teoria da dependência não pretendia desenvolver uma visão das relações internacionais em sentido estrito, explicar opções diplomáticas. Ainda assim, valeria a pena lembrar que refletia alguns elementos do ambiente internacional. Os anos 60 vêem o início das negociações Norte-Sul e a perspectiva de que, através de arranjos negociados, balizados por algum critério de justiça -os pobres não se submeteriam a critérios de reciprocidade-, seriam atenuadas as disparidades internacionais de renda. Entendíamos que os governos poderiam transformar as relações econômicas entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Isto era a contrapartida de uma espécie de "subestimação da necessidade de reformas no interior de cada país, derivada, como indiquei, de uma crença quase mágica no poder liberador da democracia.
Havia um outro elemento. Subjacente à teoria da dependência, havia uma psicologia de "receio externo. De um lado, porque, de modos variados, ainda prestávamos homenagens, veladas é verdade, à teoria do imperialismo. Porém, além disto, havia um dado concreto: a implantação autoritária na América Latina, sobretudo em seus primeiro momentos, foi feita com a conivência das potências ocidentais.
Com a crescente interdependência econômica mundial, alteram-se as regras do jogo internacional. Se o Estado ainda é um ator essencial para definir as próprias regras em que se enquadram os processos de interdependência, diminui em alguma medida o controle das variáveis que afetam, como lá apontei, os projetos de desenvolvimento. De outro lado, as negociações internacionais se tornam mais duras. As regras unctadianas de "não reciprocidade praticamente desaparecem para um país como o Brasil. No campo comercial, a Unctad (Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas) é substituída pelo GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e, agora, pela OMC (Organização Mundial de Comércio).
Os países passam a ter que gerar poder econômico para conseguir obter resultados positivos em suas negociações internacionais. O fundamento da estratégia de regionalização -e menciono o Mercosul- está fundamentalmente ligado a essa nova percepção sobre as formas de projeção econômica nas nações. Afinal, se o jogo é de reciprocidades, é necessário ter o que oferecer, e a dimensão do mercado é o primeiro trunfo.
De outro lado, compreendemos que o desafio do desenvolvimento exige intenso trabalho interno. As reformas são bem conhecidas: a estabilização econômica num quadro de equilíbrio de contas públicas, a privatização e a liberalização comercial, a criação de infra-estrutura adequada e de um sistema financeiro ágil e moderno, a disponibilidade de qualidade gerencial, a recondução do Estado ao seu campo prioritário de atuação na prestação de serviços básicos, em particular em educação e saúde.
Sabemos que, do grau de progresso verificado nesses objetivos, depende, em grande parte, o sucesso dos países na disputa global por investimentos e mercados. Em suma, a "psicologia do receio do internacional se transforma porque, hoje, ninguém duvida de que a competição internacional se concentra no estabelecimento de condições internas que determinarão de que maneira cada país se inserirá na economia internacional.
Insisto que isto não pode "desguarnecer o Estado. Não podemos repelir o internacional como fazíamos na década de 60, nem adotar o que vem de fora como verdade inabalável. O problema é, justamente, o de reforçar o Estado para que se amplie a própria margem de opção sobre as oportunidades que o sistema internacional oferece e, consequentemente, diminuam as vulnerabilidades diante de problemas concretos.
A condução de políticas de forma responsável, com cuidado redobrado diante das consequências da globalização, é fundamental. Não podemos agir com complacência e inércia no setor externo, reagindo a eventos, em vez de encaminhá-los ou preveni-los. Nesse sentido, penso que o exemplo brasileiro diante da crise financeira recente nos mercados emergentes é sintomático, ao adotar medidas de caráter preventivo após análise cuidadosa das alternativas existentes.
Conclusão
Não pretendi fazer uma excursão nostálgica à "teoria da dependência e sim chamar a atenção para um problema central de nosso tempo, o desenvolvimento.
Ainda mais do que nos anos 60, o tema se tornou político no sentido forte da expressão. A fragmentação e ampliação do conceito de desenvolvimento, os novos dilemas da inserção internacional dos países, a difusão, entre ricos e pobres, do problema do desemprego, a reforma do Estado, a complexidade da gestão do Estado, são todos parcelas de uma questão central: o que queremos que nossas sociedades sejam no futuro.
Hoje, existirá convergência, quase universal, em torno dos valores da democracia, da justiça social e da liberdade econômica. São valores orientadores e que estabelecem claramente o que não queremos. A volta ao autoritarismo, em qualquer de suas formas, é impensável no Brasil e na América Latina; desprezar as demandas por justiça social seria atitude irresponsável; recuar na compreensão de que o crescimento econômico depende de um ambiente de abertura econômica e de presença forte da iniciativa privada está fora de questão.
Porém, essa compreensão é um primeiro passo. Os outros -que significariam o desdobramento desses ideais- serão abertos pelo trabalho político, pela negociação cotidiana. Não podemos, porém, perder o ímpeto de mudar, de melhorar, de obter desenvolvimento e justiça social.
Penso que a minha disposição utópica, hoje mais temperada pelo realismo e pela responsabilidade, não se alterou. E, porque não é só minha, mas também é forte na sociedade brasileira, tenho um efetivo mandato para transformar o Brasil.

Texto Anterior: Ainda a "teoria" da dependência
Próximo Texto: O QUE É A DEPENDÊNCIA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.