São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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prêt-à-porter de pobre

MARILENE FELINTO

São muitos vírus novos, muitas ameaças: a pessoa sente uma dor de cabeça, já pensa que tem o Ébola. Surge uma mancha na pele, acha que está com Aids. Pior de tudo é não saber direito o que é um vírus, por mais que tenha observado a coisa ao microscópio do colégio. Difícil compreender o processo através do qual existência tão diminuta destrói a sua, grandiosa e inteligente.
Olha-se com um misto de respeito e ódio os cientistas, os médicos. A vontade hesita entre deixá-los prosseguir em seu trabalho ou chutar lâminas, microscópios, computadores: ``Antes era a tuberculose, a lepra, agora Ébola e Aids, para não falar do câncer que nunca se cura. Para não falar dos imprevistos terremotos, da possível súbita destruição da Terra por um desavisado meteoro. De onde vem tanta ignorância?"
Domingo ruim. A pessoa não consegue deixar de pensar em fulano que se acidentou em batida de automóvel e está morre não morre numa UTI; na mãe que faz 60 anos este mês e envelhece; nas dores presentes e no medo das dores futuras.
Para reunir forças, resistir à fragilidade da pele da mãe que se enruga e à irresponsabilidade com que fabricamos e usamos máquinas que nos matam, é urgente melhorar o domingo, vestir-se bem, sair.
Nada melhor do que os cinemas, a catarse dos filmes, das histórias alheias que poderiam ser nossas, do mundo fictício dos personagens.
Num dia como esse, fui assistir a ``Prêt-à-porter", do cineasta americano Robert Altman, sobre o estrondoso mundo da moda. Tudo o que eu queria e imaginava ver nesse filme era aparência e gente bonita.
Precisava me imaginar dona dessa beleza inacessível, meio imortal, dos modelos e suas roupas. Meu pai sempre dizia: ``a gente precisa ser bonito", numa insistência rigorosa, irritante para a criança imunda de areia, barro e sumo de mangas e cocos verdes que eu era.
Naquele dia entendi o estranho conselho do meu pai, pobre mas impecável. Mas eis que o filme de Altman é uma grata decepção de ponta a ponta. Nada acontece, praticamente não há história nem personagens -espera-se o filme todo que as pessoas reais (a atriz Cher, o estilista Jean-Paul Gaultier, por exemplo) virem os personagens que jamais virarão.
No milionário mundo da moda, nada acontece porque nada tem suficiente solidez para ultrapassar a rasa camada da superfície. Nem as intrigas de espionagem internacional nem as relações amorosas ou sexuais, por exemplo, que, de perversas e superliberais que pareciam, caem numa espécie de vazio viciado.
Também não é possível a criação de personagens, porque já se vive em representação. Quando os atores são personagens, como Sophia Loren ou Mastroianni, acabam virando a caricatura de si mesmos.
É essa interessante inversão entre realidade e imagem que Altman consegue (talvez sem querer) nesse filme inteligente, que devolve ao espectador a vida como ela é, insuportável e nua como ela é -daí talvez não ter agradado muito.
Justo no mundo da moda, onde se esperava tudo montagem e maquiagem, Altman propõe que se veja a nudez, a crueza da vida viral, pisada repisada na bosta dos cachorros, no rosto enrugado da atriz Anouk Aimeé, contra o poodle estilizado e o rosto esticado de plástica de Sophia Loren.

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