São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 1995
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Alain Touraine acha que só FHC pode salvar o país

ANDRÉ FONTENELLE
DE PARIS

Quando o sociólogo francês Alain Touraine, 70, veio ao Brasil pela primeira vez, no final dos anos 50, chamou-lhe a atenção ``um jovem professor brilhante", Fernando Henrique Cardoso.
Conhecedor da sociedade latino-americana, tema constante de seus trabalhos, Touraine defendeu um ``modelo Cardoso" para o continente, em artigo publicado pelo jornal francês ``Le Monde". Nesta entrevista, ele vai ainda mais longe: afirma que não há solução para a sociedade brasileira sem FHC.

Folha - O sr. afirmou no ``Le Monde" que os eleitores brasileiros compreenderam que Lula não representa a verdadeira esquerda.
Alain Touraine - O problema da esquerda -o que chamamos de esquerda, que não é a mesma coisa em diferentes países- é que ela se tornou essencialmente defensora dos setores protegidos pelo Estado. Houve uma evolução que deu uma importância crescente ao setor estatista no PT e na CUT.
A dificuldade de Brasil, França e Itália, países retardatários, que recusaram o choque liberal -por bons ou maus motivos-, é que precisam fazer, ao mesmo tempo, a liberalização e a política social.
FHC tem que fazer ao mesmo tempo -daí a aliança com o PFL- uma política de desestatização, desburocratização, aceitação da lei do mercado mundial etc... e lutar contra as extremas desigualdades sociais que tornam a sociedade brasileira extraordinariamente frágil.
Folha - Sem o apoio da esquerda, o presidente não corre o risco de fazer apenas a primeira metade dessas reformas?
Touraine - Corre o risco de não fazer nem uma nem outra. O dramático é que, quando você tem duas tarefas que se opõem, pode optar por uma política fraca e acabar sozinho. Em política, não se faz nada pela metade. É um problema de arte política. Não diria um problema de negociação, porque FHC é um bom negociador.
Ele deve se concentrar, primeiro, em tornar o Estado mais leve. Segundo, em reforçar o Estado -a capacidade de decisão central. Terceiro, é preciso que, em pontos precisos, haja reformas sociais.
Não acredito tanto, como a geração anterior, na reforma agrária. Mas acredito em programas precisos -na saúde pública, na habitação popular, no ensino básico, para erradicar o analfabetismo.
Não se pode conciliar um vasto programa de liberalismo econômico com um vasto programa de intervenção social.
Folha - Qual é sua impressão sobre os quatro primeiros meses de governo?
Touraine - É um governo que sofreu o golpe da crise mexicana. É frágil, porque não tem um partido de apoio. Todos concordam que o PSDB é uma grande desordem, incapaz de governar. Além disso, o governo é minoritário no Parlamento.
Infelizmente, no sistema brasileiro, as coisas se arranjam no Parlamento com negociações que têm sempre um preço. Compra-se, para ser claro.
Com isso, você tem um grande programa e, depois, fatia por fatia, não resta muita coisa. Assim é a oligarquia brasileira: uma constelação de interesses dominantes, locais, privados, sem visão global. A tal ponto que, nas eleições presidenciais, não tem programa, nem candidato. Quando se trata de se defender no Parlamento, ela é muito mais eficaz.
Folha - Um sociólogo na Presidência, isso o faz sonhar?
Touraine - (Ri) Sim. Não apenas na Presidência. O Plano Real é um plano marcado pela sociologia. É importante que se compreenda que hoje não basta dizer: ``É preciso abrir a economia." Não é o momento de um plano Cavallo, Paz Estenssoro ou Salinas (planos neoliberais, respectivamente, da Argentina, da Bolívia e do México). É preciso combinar abertura econômica e intervenção social.
Essa é a força de FHC: afora ele, não há nenhuma solução possível. Os riscos para o Brasil seriam graves, em caso de fracasso.
Folha - Como a vitória de Lula?
Touraine - Não, eu tenho um sentimento favorável a Lula. Esse homem fez o máximo que pôde para ser responsável. Mas acho que Lula seria incapaz de controlar essa união do social com a economia. Seria levado a uma política muito social, que provocaria uma comoção.
Folha - O sr. também escreveu que a eleição de Fernando Henrique Cardoso foi um fato mais importante que a crise mexicana. Ainda pensa assim?
Touraine - O que o caso mexicano demonstrou? Que transformar a economia sem construir um sistema político leva à catástrofe. Entre parênteses, a Argentina não está longe disso.
O Brasil é a primeira afirmação clara de que não há outra solução além da associação de liberalismo econômico e intervenção social, a definição clássica da social-democracia.
Folha - O sr. acha que os eleitores de FHC tinham consciência disso?
Touraine - O eleitorado brasileiro votou em Fernando Henrique porque ele acabou com a inflação. O que não é um detalhe: quando você não tem o que comer na metade do mês, você aceita perder um pouco da sua renda, se a moeda for estável. Aceita comer um pouco menos, mas todo dia.
Mas, evidentemente, o sucesso do plano não elimina a fraqueza da coalizão política. Contrariamente ao que todos esperavam, inclusive eu, as reformas se revelam muito mais lentas e difíceis. Folha - Não é ingênuo acreditar em reformas aliando-se aos mesmos partidos que sempre estiveram no poder?
Touraine - Não acho. Em primeiro lugar, historicamente falando, essa é a situação que os EUA conheceram no início do século, com Theodore Roosevelt e o Partido Republicano, que era, ao mesmo tempo, o partido dos operários e dos capitalistas, contra os camponeses. Esse tipo de coalizão é bastante frequente.
O que está em jogo -talvez esteja enganado, mas é assim que vejo as coisas- é: o que chamamos de oligarquia -vamos chamá-la de oligarquia do Nordeste- pensa que pode ser uma força dirigente no Brasil e quer apenas defender seus interesses, ou, com o perdão do termo, faz uma análise em termos de classes.
Se ela faz uma análise em termos de classes -para usar a linguagem de Gramsci (filósofo marxista italiano, 1891-1937)-, sabe muito bem que a única classe dominante hegemônica é o patronato de São Paulo. A questão é: essa oligarquia vai tentar integrar seus interesses na hegemonia de São Paulo?
Ora, a chegada de Fernando Henrique ao poder é a chegada de São Paulo ao poder. O sonho dele é ser o homem que integra, através de (Marco) Maciel, essa oligarquia. Maciel é o homem que compreende que a oligarquia nortista deve se integrar na classe dirigente. O que pressupõe, um pouco à japonesa, uma aliança com o Estado.
O Brasil viveu a crise dos anos 80: redução da renda, aumento da desigualdade social, uma situação esmagadora. Houve uma espécie de silêncio no fim dos anos 70, início dos anos 80. De certa maneira, uma situação revolucionária sem revolução: desigualdade realmente extrema e cada vez maior.
As pessoas que refletem de maneira responsável no Brasil sabem que isso não durará eternamente. Sociedade tão injusta ou mergulha no caos ou na violência revolucionária ou militar.
Há um Brasil moderno considerável, que tem a capacidade de ser hegemônico, no sentido de ter projetos para o conjunto da sociedade. O que não exclui o conflito. Se Fernando Henrique fracassar, seria a perda de rumo, a dilaceração da sociedade.
Seria tentado a dizer que há grandes dificuldades para ele. Com Fernando Henrique, é difícil; sem ele, tudo é impossível.
Folha - O conflito recente com os petroleiros pode ameaçar as reformas?
Touraine - Não acompanho diariamente os assuntos brasileiros. Só posso reagir de modo um pouco frágil, logo, prudente.
Houve, em vários países, uma aliança do Estado modernizador com um setor protegido, estatista, mais ou menos corporativista, como as grandes empresas na França e na Itália. Hoje, esses setores, que foram os chamados progressistas, estão na defensiva. Tentam proteger suas vantagens, que são respeitáveis, mas de uma forma que acentua o dualismo da sociedade.
Há 15 anos, o sindicalismo novo, de Lula, do ABC, era o sindicalismo do Brasil industrial moderno. Hoje, ele se transformou no sindicalismo de defesa do setor público. Não estamos mais no período nacionalista. Os setores protegidos, os monopólios de Estado não são mais portadores da modernização nacional.

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