São Paulo, quinta-feira, 1 de junho de 1995
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Tio Dave tira férias às custas de Churchill

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

Muitos anos atrás, no final da década de 50, tio Dave vivia em Paris, trabalhando como correspondente da revista ``Look". O emprego era fácil, mas os invernos na capital francesa provocavam crises agudas de ``Les Blues".
Era difícil para um jovem repórter fugir do céu cinzento de Paris para passar férias de inverno em algum lugar de clima mais ameno, como, por exemplo, a Côte d'Azur. Mas, como todos sabem, Alá é grande e me trouxe uma passagem para Monte Carlo sob a forma de um agente da CIA.
É claro que os homens que trabalhavam para ``A Companhia" eram espiões. Era impossível não reconhecê-los na rua. Todos se vestiam como aquilo que eram: formandos de universidades tradicionais de primeira linha, como Harvard, Yale ou Princeton.
Para garantir que os espiões russos da KGB pudessem identificá-los sem problemas nas ruas de Paris, sempre usavam sobretudos da filial londrina da Burberry's.
Para um correspondente no exterior, era obrigatório contar com alguns telefones de fontes da CIA em seu caderninho. Sempre ajudavam a causar boa impressão em seu editor, quando este passava por Paris, vindo de Nova York.
Às vezes meus contatos envoltos em sobretudos ligavam para correspondentes como tio Dave para tentar plantar histórias na imprensa da Gringolândia. Vamos chamar meu amigo na Companhia de ``Tim". (Ele realmente existiu. Ainda existe.)
Tim iria tornar-se minha passagem para grandes férias em Monte Carlo no meio do inverno, por cinco anos sucessivos. Tudo começou quando ele me ligou para sugerir que tomássemos um drinque no restaurante Le Pavillon Elysée.
É claro que Tim apareceu vestido exatamente como Humphrey Bogart. Com ar irreverente, recostou-se em uma cadeira num canto pouco iluminado. Perguntei: ``O que está rolando?" Meu amigo agente secreto percorreu o salão com o olhar, presumivelmente para averiguar a possível presença de agentes inimigos russos.
Tim me olhou de soslaio e cochichou: ``Churchill está morrendo!" Espantado, derrubei algumas gotas do fino conhaque que estava a caminho da minha boca. Pedi maiores detalhes. ``A única coisa que posso te dizer é que o velho está sendo levado de avião esta noite, da Inglaterra para Mônaco. Parece que é seu último desejo."
Tim já estava vestindo seu sobretudo outra vez. O encontro tinha terminado. O resto do furo exclusivo ficaria por minha conta. Por alguma razão a CIA havia resolvido passar essa informação exclusiva em primeira mão para o correspondente da revista ``Look" em Paris -ou seja, para mim.
Rapidamente peguei um táxi Renault preto que passava pelo local e corri para o bureau da revista. Datilografei uma mensagem para a revista, em Nova York. Redigida no pomposo ``telegrafês" da época, ela dizia: ``Indo para Monte Carlo ponto Capa exclusiva ponto abre aspas Morte de um homem, vírgula, fim de uma era fecha aspas confidencial Churchill finalizando ponto final".
Cheguei a Mônaco no dia seguinte pela manhã e assumi meu posto o mais perto possível do moribundo, na porta do Hotel de Paris. Churchill demonstrava bom gosto em suas últimas vontades. Ele havia escolhido o melhor hotel da Riviera para morrer.
O Jovem Correspondente Dave não estava muito familiarizado com os hábitos da realeza, mas não demorou a aprender.
Em pouco tempo, eu já estava esquiando em Aurons, uma encosta vizinha, com o secretário particular americano da (princesa) Grace Kelly Rainier. Não demorei a começar a trocar piadas com a própria princesa em festas.
É claro que meu furo exclusivo pouco depois se transformou em propriedade pública. À medida que Churchill se agarrava teimosamente à vida, e que as despesas da minha revista aumentavam perigosamente, eu me esforçava para cavar mais informações exclusivas.
Aristóteles Onassis vivia em Monte Carlo. Quando De Gaulle esteve prestes a anexar o principado à França, o armador grego ajudou a salvar o lugar, comprando uma grande participação em seu cassino. Em troca, Onassis se mudou para lá e dirigia suas operações mundiais desde Monte Carlo.
Onassis era o fanzoca número um de Winston Churchill. Ele havia trazido o grande inglês para a Riviera num jato da Olympic Airways, de sua propriedade. Onassis pagava a conta do apartamento de cobertura que Churchill ocupava no Hotel de Paris. A impressão que eu tinha é que Onassis estava dirigindo a morte de Churchill.
Comecei, portanto, a cultivar a amizade do afável armador grego. Monte Carlo era um lugar minúsculo, mais ou menos do tamanho de Barretos. Todo mundo acabava se cruzando no cassino.
Onassis e eu criamos o hábito de caminhar juntos pelas ruas vazias, molhadas de garoa, da cidadezinha. O correspondente Dave tentava fazer com que Onassis revelasse o último (eu esperava) boletim médico desanimador sobre a morte do primeiro-ministro.
Mas ela não aconteceu.
``O sr. Churchill", afirmou o armador, ``não vai morrer neste inverno. O médico disse que ele está melhorando a cada dia que passa. A qualquer dia deve retornar à Inglaterra".
Fiquei arrasado. Meu furo tinha explodido, como uma bolha. Em Nova York, os editores que aguardavam, ansiosos, a sensacional matéria de capa sobre a morte de uma das maiores personalidades da história recente começariam a tramar a morte de outra personalidade: eu.
Mas a memória do ser humano é curta. Nova York esqueceu-se e perdoou. Tanto assim que, quando no inverno seguinte em Paris meu informante contou a mesma história outra vez, fui novamente enviado a Monte Carlo para cobrir o final da vida do grande homem.
Acabei retornando quatro vezes para passar fantásticas férias de inverno em Mônaco -a cada vez para estar presente à morte de um homem e ao fim de uma era.
Churchill sempre foi teatral. Enquanto descansava em seu apartamento de cobertura do grande hotel, ele garantia sua própria presença na manhã seguinte nos jornais do mundo inteiro.
Por toda parte onde ia, era acompanhado pelo sargento Edmund Murray, uma espécie de cruzamento entre guarda-costas e porta-voz. Enquanto Churchill descansava no último andar, o sargento Murray promovia uma reunião diária com a imprensa no bar do Hotel de Paris, para transmitir o último ``boletim médico".
Durante semanas o sargento Murray dava a última resposta às perguntas do correspondente Dave e do punhado de outros jornalistas. ``Cavalheiros", dizia em tom solene, ``a condição do primeiro-ministro permanece estável". O boletim permanecia igual durante semanas. Só mudava no dia em que Churchill recebia a notícia de que a primavera estava começando na Inglaterra e o clima, esquentando o suficiente para voltar.
Naquele dia, o sargento Murray se dirigia à imprensa com um discreto brilho britânico nos olhos. ``Cavalheiros, o primeiro-ministro teve uma melhora repentina", dizia. ``Depois de consumir a maior parte de uma garrafa de conhaque envelhecido, o sr. Churchill perguntou pela saúde da camareira."
O que me fez lembrar das férias pagas que passei na Riviera naquela época foi o lançamento de um livro chamado ``Long Sunset: Memoirs of Winston Churchill's Last Private Secretary" (Longo Ocaso - Memórias do Último Secretário Particular de Winston Churchill), de Anthony Montague Brown, publicado pela Cassell, por US$ 20.
Uma resenha favorável saiu na ``Spectator" desta semana. Nela aparece uma foto de Churchill descendo a rampa de um avião. A seu lado, como sempre, está a figura do sargento Edmund Murray.

Tradução de Clara Allain

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