São Paulo, quinta-feira, 1 de junho de 1995
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A bancada ruralista ganhou _de quem?

MAILSON DA NÓBREGA

O governo acabou cedendo às pressões da bancada ruralista. Concordou com juros nominais de 16% ao ano para o crédito rural. Deve reescalonar dívidas e suspender cobranças judiciais.
Não havia outra saída. Os deputados ameaçavam derrotar os projetos de reforma caso sua demanda corporativista não fosse atendida. Afinal, a reeleição deles é pouco influenciada pelo fim dos monopólios das telecomunicações e do petróleo. Subsídios para os eleitores funcionam muito mais.
Esses parlamentares são um misto de subdesenvolvimento político e atraso cultural. Constituem um dos subprodutos da ausência de balizamentos partidários, do permissivismo da legislação eleitoral e da eleição proporcional sob listas abertas: o deputado pode fazer o que quiser do mandato, inclusive chantagear o governo que diz apoiar.
Os ruralistas são ainda adeptos da intervenção estatal no mercado de crédito e crêem que há recursos inesgotáveis e baratos nos bancos oficiais.
A perda por eles infligida ao Orçamento federal, estimada em R$ 900 milhões, é relativamente pequena. Se for apenas este o preço para modernizar o país, vale a pena.
O ruim é que a barganha se baseia também em um monumental equívoco, o de que subsídio à agricultura é feito via taxa de juros. Utiliza-se uma verdade -a de que a agricultura é subsidiada em todo o mundo- e sustenta-se uma mentira, a de que ajudar o setor é garantir-lhe crédito subsidiado.
Nenhum país desconhece a necessidade de apoiar a agricultura. Há inúmeras justificativas. Dois terços do orçamento da União Européia têm a ver com a agricultura. Os Estados Unidos gastam bilhões de dólares anuais em favor dos produtores rurais. Entretanto, o crédito subsidiado não faz parte desse esforço ou representa parcela ínfima.
Subsidiar a agricultura não é contentar devedores politicamente poderosos ou protegê-los dos efeitos temporários de políticas de estabilização econômica. O certo é investir em ações impessoais, que alcancem todos os agricultores e propiciem o aumento da eficiência do setor. A meta deve ser aumentar a produtividade, de superior efeito social, em vez de propiciar alívio financeiro a um pequeno grupo.
Gastos públicos corretos em prol da agricultura são especialmente aqueles voltados para ensino, pesquisa, assistência técnica e extensão rural. Ao lado desses, é preciso investir na ampliação da oferta de serviços de transportes, comunicações e armazenamento.
O crédito subsidiado serve em geral apenas para compensar ineficiências, perpetuar atitudes acomodatícias e ampliar o potencial de corrupção implícito nos respectivos programas.
Não se vê nenhum dos ruralistas defendendo ações mais racionais. Nenhum deles pugna pelo fim da excessiva vinculação de recursos, uma herança perversa da Constituição de 1988, que engessa o Orçamento e impede a alocação de maiores dotações, por exemplo, para a pesquisa agropecuária. É que esta promove o avanço tecnológico, enquanto o subsídio creditício gera votos.
Ninguém em sã consciência deixa de entender a situação aflitiva dos agricultores. Eles estão pagando uma conta elevadíssima. Os juros atingiram níveis escorchantes, como reconheceu o presidente da República. A sobrevalorização cambial lhes impôs perdas expressivas de receitas.
Tratam-se, é verdade, de ônus difíceis de evitar no atual esforço de estabilização. Derivam do desequilíbrio fiscal, do imperativo de neste momento elevar os recolhimentos compulsórios dos bancos e da excessiva dependência que o governo tem da tributação do mercado financeiro.
O custo de estabilizar a economia brasileira é muito alto. Não fossem a rigidez orçamentária e a falência do sistema de previdência social, o regime monetário não seria tão perverso e dificilmente haveria cunhas amplificando o custo dos empréstimos.
A redução do consumo não demandaria a pletora de limites ao crédito, ao financiamento do consumidor, às operações de leasing, ao uso dos cartões de crédito e ao sistema de consórcios. As taxas de juros não precisariam ser estratosféricas.
Essa parafernália de intervenções e custos não atinge apenas os agricultores que devem aos bancos. Todos que de alguma forma dependem do crédito, incluindo as micro, pequenas e médias empresas, pagam parte da imensa conta.
As perdas de receita da agricultura atingem o universo dos produtores rurais, afetando também os que se financiaram junto a outras fontes e os que pagaram suas dívidas aos bancos. A solução obtida pelos ruralistas é discriminatória: beneficia só os agricultores que mantêm débitos no sistema financeiro.
Por mais procedente que seja a demanda dos devedores do crédito rural, restringir o benefício a eles não é justo. Mas a dura realidade é que atender a todos significaria agravar o desequilíbrio nos fundamentos macroeconômicos do Plano Real, criar o risco de seu fracasso e transferir a conta para os assalariados, via inflação.
O governo se tornou refém dos ruralistas. Se eles não fossem contentados, as reformas seriam rejeitadas e as expectativas se deteriorariam. As distorções geradas pela política econômica seriam mais graves. O combate à inflação ficaria mais difícil e incerto. Por outro caminho, a conta seria remetida novamente para os mais pobres.
Não havia mesmo escapatória. Era ceder ou ceder. O ideal seria que a conta ficasse apenas nos R$ 900 milhões. Deve ser muito mais, pois nessas ocasiões costuma-se subestimar os efeitos de pressões fisiologistas irresistíveis, para diminuir sua impressão negativa perante a opinião pública e para não afetar a moral dos que no governo enfrentam a luta desigual contra interesses poderosos.
Chamar a atenção para as consequências do modo de atuar dos ruralistas contém riscos. Sem argumentos, eles se vingam de seus críticos com algumas tolices, como dizer que estes estão a serviço dos bancos.
Mas não dá para calar diante da sua vitória, ainda que em benefício de uma sofrida categoria. Os agricultores precisam de apoio, mas o caminho não é esse. Os ruralistas ganharam, mas contra todos nós.

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