São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Falsidade ideológica

ROBERTO CAMPOS

``A CUT é uma falsidade ideológica ambulante. Intitula-se central `única' dos trabalhadores quando é apenas uma das quatro."
(De um líder da Força Sindical)

A greve dos petroleiros vale por uma advertência de que o país não pode mais continuar a varrer para debaixo do tapete o lixo constitucional e jurídico acumulado nestas últimas décadas. Porque o que está em jogo é nossa viabilidade como país moderno e a possibilidade de virmos a ser uma democracia, hoje deformada pelos monopólios. Os petroleiros lançaram um tríplice veto: ao Judiciário, que foi desobedecido; ao Executivo, acionista controlador, que foi desafiado; ao Legislativo, que se procura intimidar previamente à votação de flexibilização do monopólio. Houve invasão de propriedades públicas. E, de lambuja, foram desrespeitados os consumidores que, numa economia de mercado, são soberanos e não reféns.
A oportunidade da greve surgiu de um conjunto de fatores que há muito não mais deveriam estar no nosso horizonte, dos quais referiremos cinco:
. o monopólio estatal da empresa petrolífera;
. o monopólio sindical;
. a intervenção do Executivo no processo negocial trabalhista;
. a mediação de conflitos trabalhistas por uma justiça especializada; e
. o desejo de uma minoria radical de desestabilizar o atual governo.
Em relação ao primeiro e ao segundo pontos, o país vê-se diante da surrealista situação de um monopólio estatal de produção e refino que discute consigo mesmo -isto é, com o monopólio sindical que é composto do mesmo pessoal que dirige a estatal- para fixar as vantagens que terá seu funcionalismo. Este se senta, por assim dizer, dos dois lados da mesa negociadora. Os resultados, pagos por todos nós, o resto do povo, são aqueles que seriam de se esperar em tais condições. Os petroleiros têm, entre salários e vantagens, um dos níveis mais altos do país; vantagens sociais suecas para uma produtividade de cucaracha... É claro que seu pessoal técnico especializado deve ser bem pago. Apenas o processo atual equivale a os petroleiros negociarem consigo mesmos e fixarem (por comum acordo...) quanto irão ganhar.
Há outro aspecto a considerar: o governo. Este é obrigado, pela natureza do monopólio da empresa estatal, a exercer funções decisórias que, no setor privado, caberiam a diretores e gerentes. Se a Petrobrás fosse privada (ou, pelo menos, se fosse administrada como tal, incorrendo no risco eventual da falência se mal gerida) sua direção já teria há muito delimitado a margem factível de concessão. E os trabalhadores, em regime de liberdade sindical, teriam maior realismo em suas reivindicações, refreando a influência de ideólogos corporativistas. E teriam que se preocupar com a concorrência das empresas não-grevistas.
Sabemos que o Executivo interveio nas negociações, no final do ano passado, e que vantagens foram prometidas, com acompanhamento de chope em Juiz de Fora, pelo ex-presidente Itamar, ansioso por reforçar na despedida sua imagem paternalística. Não foram obedecidas as normas salariais do Executivo para as estatais, nem firmado acordo pelos órgãos diretores da empresa. Gestos de espécie, que gerariam reivindicações em cadeia nos outros dinossauros estatais, refletem uma situação antidemocrática e pré-moderna, própria de quando o soberano absoluto distribuía moedas entre os pedintes. O governo não tem o direito de representar nenhuma das partes numa disputa contratual. E a Justiça julgou de acordo com a lei, declarando inválidas as concessões. Resultado: confusão. Os petroleiros, frustrados, descambaram por um caminho de ilegalidade tão grave que não se conhece precedente. E agora, seja por culpa de umas cabeças esquentadas, seja por desígnio de uma minoria ativista, seja simplesmente porque todo o assunto foi mal conduzido desde o começo, o país se encontra na situação de refém, sem lei, sob riscos enormes. Só o custo do movimento em termos de importações já constituiu uma ameaça perigosa para a estabilidade interna e externa do Real.
Considere-se também o papel da minoria radical derrotada nas urnas. Entre eles, no PT e no seu braço secular, a CUT, existem elementos provindos ainda da desastrosa luta armada do fim dos anos 60 e começo dos 70. Greves políticas vêm sendo preparadas desde a vitória de Fernando Henrique, com uma ostensiva mobilização dos setores-chave da economia, exacerbada assim que o presidente demonstrou vontade de cumprir sua plataforma eleitoral, propondo a reforma de dispositivos da Constituição que, hoje, inviabilizam economicamente o país. Nem todos são xiitas irredutíveis, mas as vicissitudes do PT nestes últimos tempos mostram que os que o são têm muita capacidade de ação. É claro que suas táticas, afiadas desde Lênin -palavras de ordem, provocações de rua, ocupação de fábricas e de prédios públicos, piquetes violentos, greves orquestradas (a greve geral é a arma máxima na doutrina revolucionária)- estão hoje obsoletas no resto do mundo. Mas nem por isso serão inócuas se encontrarem um governo bocó, estilo Kerensky, que achava democrático não botar na cadeia os culpados dessas ações. Os bolcheviques tomaram o poder com 24% do Parlamento e 30% de infiltração nas Forças Armadas russas. O preço, 50 milhões de vítimas, seria pago por outros...
A falência do socialismo dirigista não impressiona nossos radicais por duas razões. Primeiro, porque eles vivem fora do mundo e do tempo, numa realidade imaginária de sua própria criação, com as cabeças bloqueadas por palavras de ordem, fervendo de velhos e novos ressentimentos das derrotas e fracassos históricos que não conseguem compreender. E, segundo, porque o Brasil atravessa uma fase crítica, em que o fracasso do plano de estabilização de Fernando Henrique parecerá aos nossos xiitas uma oportunidade para recuperar prestígio e, quem sabe, ganhar uma voz na ordem das coisas.
Quando Getúlio Vargas adotou o modelo trabalhista-sindical do fascismo italiano, o que ele tinha em vista era um Estado corporativista, em que os grupos de interesses seriam tutelados pela autoridade em vez de disputarem entre si, na arena democrática e no mercado. Depois, com o peleguismo, imaginou poder organizar uma base política incorporando, sob controle, o novo ator, que eram as massas trabalhadoras urbanas. O esquema, inerentemente instável, saiu de controle com João Goulart, vice minoritário, que chegara ao poder por acaso. Ficamos, assim, com um modelo disfuncional já nos anos 60. E quando, no final da década seguinte, começaram a surgir lideranças sindicais mais modernas, encontraram uma estrutura obsoleta. Esta, graças à desastrada Constituição de 1988, com o sindicato único e as contribuições obrigatórias, serviu para arregimentar empregados de estatais, do serviço público e assemelhados, que, entre outros privilégios, têm, para todos os efeitos, o da estabilidade. E gostam de transformar greve em férias remuneradas, pelo perdão dos dias parados...
O Brasil pode ser estrangulado por um punhado de gente entrincheirada em posições estratégicas em setores tais como eletricidade, petróleo, transportes e comunicações. É dever absoluto do Estado impedi-lo, acabando com a habitual farsa da impunidade, sem leniência para os que desafiaram publicamente a lei.
Mas só isso não basta. É preciso fazer reformas estruturais: acabar com o sistema de monopólios estatais e sindicais, que é a origem de tudo; mudar o conceito de Justiça do Trabalho; e criar o contrato coletivo. A liberdade resultante acabará com a politização e a irresponsabilidade dos falsos sindicatos atuais, possibilitando o aparecimento de um sindicalismo legítimo e autêntico, do qual o país muito precisa.

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