São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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De volta à armadilha?

LUCIANO COUTINHO

O país vai experimentar o lado amargo do Real: recessão, desemprego e taxas de juros altas
O mês de maio reservou uma agradável e, possivelmente, ilusiva surpresa para as autoridades econômicas: 1) as reservas de divisas foram engordadas em mais de US$ 2,4 bilhões, em função do movimento positivo do câmbio comercial (+ US$ 1,5 bilhão) e de entradas de capitais privados de curto prazo, totalizando quase US$ 0,9 bilhão; 2) as pressões inflacionárias refluíram, com recuo dos índices mensais de mais de 2,5% em abril para cerca de 2% em maio -movimento auxiliado pela retração dos preços agrícolas; 3) a eficiente coordenação política do governo, aliada à inoperância e aos erros das oposições, lhe grangeou vitórias expressivas no capítulo das reformas constitucionais.
Reconfortados por estes fatos ``benignos", os condutores da política econômica aparentemente decidiram não mexer mais na taxa de câmbio, mantendo a atual banda cambial defasada por prazo indefinido, ainda que isto signifique sustentar juros muito elevados. Estes poderiam ser reduzidos apenas gradualmente, na medida em que se aprofunde o desaquecimento da economia.
Torcem para que o processo recessionista venha logo e com força suficiente para derrubar as importações e conter reajustes oportunistas de preços. Diga-se de passagem que não há qualquer indício de que a substituição do presidente do BC venha alterar esta linha de conduta. Ao contrário, tudo indica que a equipe econômica tende a se enredar novamente na ``armadilha mexicana", como se fosse possível financiar um enorme déficit em conta corrente com o ingresso de capitais de curto prazo.
A aposta das autoridades econômicas se baseia em duas esperanças malfundadas: a) na expectativa de que os mercados financeiros mundiais se normalizarão rapidamente e de que os juros cairão nos EUA, propiciando a volta duradoura dos ingressos de capitais para os países em desenvolvimento, particularmente para os países que ofereçam atraentes oportunidades de ganhos com a privatização de importantes serviços públicos; b) na expectativa de que a recessão inverterá a balança comercial brasileira rapidamente para uma posição superavitária, ainda que modesta, mas suficiente para evitar um déficit de grande magnitude no balanço de pagamentos.
Trata-se efetivamente de uma aposta de alto risco pelas seguintes razões:
1) os resultados positivos do movimento de câmbio nos últimos quatro meses (fechamento de câmbio exportação menos fechamento de câmbio importação) devem-se fundamentalmente à reposição do estoque de contratos de antecipação de câmbio-exportação (ACC), ou seja, à recomposição do endividamento dos exportadores, que havia se reduzido à metade (i.e. de US$ 12 bilhões para US$ 6 bilhões) após a imposição de restrições em outubro do ano passado e depois levantadas em fevereiro de 95. Este processo deve se esgotar neste próximo mês de julho;
2) o desempenho efetivo das exportações (i.e. mercadorias e serviços concretamente embarcados/prestados ao exterior) vem sendo medíocre e a crise na Argentina e no México pode sacrificar quase US$ 1,5 bilhão de nossas vendas externas. A trajetória atual sinaliza exportações na faixa de US$ 44-45 bilhões em 95 (US$ 43,5 bilhões em 94);
3) de outro lado, as importações aumentaram brutalmente desde o segundo semestre de 94 e não se reduzirão com a intensidade e velocidade necessárias. Com efeito, as importações saltaram de um patamar de US$ 30 bilhões entre maio e setembro do ano passado para mais de US$ 52 bilhões ao mês no primeiro quadrimestre de 95. Este impressionante aumento se deve a três tipos de fatores: a) à verdadeira explosão das importações de automóveis e de outros bens de consumo (mais de 250%); b) ao forte aumento das importações de bens de capital; c) à expansão igualmente forte das importações de matérias-primas, partes e componentes.
Seria necessário reduzir drasticamente as importações, a curto prazo, para retomar os superávits comerciais, mas isto não parece factível, pois o aprofundamento da abertura econômica criou e consolidou canais de comercialização e sistemas de distribuição que resistem à reversão. As importações de bens de capital, por sua vez, também não se revertem velozmente, dado o período de maturação dos investimentos em curso.
Assim, ainda que sobrevenha uma considerável recessão no segundo semestre, será lento o processo de queda das importações e de obtenção de um saldo positivo na balança comercial -o que possivelmente só ocorrerá após o mês de outubro.
Nesse contexto, a balança comercial deve encerrar o ano de 95 com um déficit entre US$ 3,5 bilhões e US$ 6,0 bilhões, o que somado ao déficit da conta de serviços (US$ 15 bilhões) significa um desequilíbrio de grande escala na conta corrente com o exterior, dependência crescente do ingresso de capitais externos e risco de uma perigosa perda de reservas se os investidores estrangeiros desconfiarem desta situação de fragilidade.
Com efeito, após o trauma da crise mexicana, seria ingenuidade esperar por influxos sólidos e duradouros de capitais financeiros externos.
As autoridades econômicas já deveriam ter aprendido a lição de que uma moeda forte requer invariavelmente um superávit comercial. Mas, para manter o Plano Real, com a taxa de câmbio ``fixa" e ainda assim correndo riscos, dependem de uma forte recessão e da privatização de ativos públicos, para atrair investidores estrangeiros.
Ou seja, acabou a fase dourada do plano, em que era possível conciliar crescimento, inflação baixa e financiamento externo suficiente para manter reservas elevadas. Agora o país vai experimentar o lado amargo do Real: recessão, desemprego e juros altos.
Mas esta não é a única via: a correção da defasagem cambial e a redução dos juros poderiam estar no centro de uma nova agenda de desenvolvimento com estabilidade de preços, desde que houvesse disposição para negociar com as forças organizadas da sociedade uma política de rendas, com mecanismos justos de desindexação e controles de preços, salários e juros.

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