São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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As razões de Arida

EDUARDO GIANNETTI

A saída inesperada de Pérsio Arida da presidência do Banco Central suscita duas perguntas básicas. A primeira é: por que? Que motivos teriam levado Arida a pedir demissão do cargo num momento tão delicado na condução do Plano Real? A outra pergunta é de caráter prospectivo. Quais podem ser as conseqências da mudança na cúpula do BC? Até que ponto a demissão de Arida -o principal arquiteto do Real- representaria o prelúdio de alterações mais substantivas nas políticas em curso?
Ao anunciar publicamente o pedido de demissão, Arida fez questão de enfatizar ao máximo o caráter pessoal daquele ato: ``Depois de um longo processo de reflexão pessoal, decidi, em uma decisão estritamente pessoal -pessoal mesmo-, pedir o meu afastamento da presidência do BC". Indagado por jornalistas sobre a natureza dessa ``decisão de caráter absolutamente pessoal", o presidente demissionário do BC esquivou-se afirmando que ``decisões pessoais não são motivo de curiosidade pública".
A atitude de Arida, procurando claramente evitar que sua saída arranhe em qualquer sentido a credibilidade da equipe econômica ou prejudique o andamento do plano, é um gesto digno de respeito e admiração -uma ação coerente com a trajetória de um homem público que, além do seu excepcional talento na formulação de alternativas de política econômica, sempre pautou sua conduta na vida pública por uma disposição altamente construtiva e um irrepreensível sentido de missão na defesa do bem comum.
O problema, contudo, é que por mais elogiável que tenha sido a resposta evasiva de Arida quanto às razões de sua demissão, ela não tem o dom de afastar a pergunta que estão todos naturalmente se fazendo. Quais os verdadeiros motivos que o teriam levado a pular fora do governo FHC depois de menos de cinco meses à frente do BC?
Uma coisa -perfeitamente aceitável- é dizer que razões pessoais não deveriam ser motivo de curiosidade pública. Outra, no entanto, é imaginar que decisões da importância daquela tomada por Arida possam não ser objeto de grande perplexidade geral. O fato é que, diante de acontecimentos potencialmente graves para o futuro do país como este, tanto os mercados como a opinião pública odeiam o vácuo. Pior: na ausência de uma explicação plausível, o vácuo acaba dando margem a um mar de especulações.
Não acredito que se possa atribuir a saída de Arida a algum ponto específico de conflito como a pressão dos empresários para baixar os juros, dificuldades na negociação de uma solução definitiva para os bancos estaduais sob intervenção, discordâncias eventuais com membros da equipe econômica quanto ao câmbio e à desindexação salarial ou, ainda, o desgaste sofrido pelas grotescas acusações de vazamento de informações na desvalorização cambial feita em março.
É bem provável, sem dúvida, que cada um desses episódios tenha tido sua cota na decisão final de Arida de jogar a toalha. Duvido, no entanto, que algum deles isoladamente -ou até mesmo a sua força conjunta- explique o verdadeiro motivo do pedido de demissão. Minha hipótese à distância é a de que, subjacente à decisão de Arida, existe uma razão não só mais profunda, mas paradoxalmente mais pessoal, do que todos os motivos ostensivos até agora insinuados.
Não é de hoje que, como dizia Marshall, ``é quase impossível para um economista ser um verdadeiro patriota e ter a reputação de sê-lo em sua própria época". Mas numa sociedade como a brasileira -onde a convivência prolongada com a inflação e a politização absurda das decisões governamentais geraram distorções arraigadas e aberrantes na economia do país-, a situação do economista que porventura ocupa cargos executivos no primeiro escalão do governo transformou-se num pesadelo que supera de longe qualquer coisa que o pobre Marshall, por mais que ousasse, poderia imaginar.
Não se trata, é claro, dos baixos salários e do estorvo de Brasília. Refiro-me ao que deve ser a sensação aterradora de frustração e impotência diante de uma dupla realidade: a absurda falta e/ou inoperância dos instrumentos para a implementação de políticas econômicas, de um lado, e as inacreditáveis agressões à lógica e ao bom-senso que marcam o corpo-a-corpo no cotidiano da vida pública brasileira de outro.
Para ir direto ao ponto. Suspeito que as razões de Arida para deixar o governo sejam mesmo, como ele insiste, pessoais, mas não no sentido que vulgarmente se dá a este termo. O raiz do problema está no fato de que, de alguns anos para cá no Brasil, a ocupação e o exercício de funções executivas na área econômica tornaram-se um tormento virtualmente insuportável para qualquer cidadão -economista ou não- que tenha um compromisso mais firme com padrões mínimos de racionalidade econômica e que, ao mesmo tempo, não alimente ambições pessoais de poder.
A relutância inicial de Arida em aceitar o convite de FHC para a presidência do BC é de domínio público. Se a hipótese acima é correta, essa hesitação se explica pelo simples fato de que, como integrante da equipe econômica sob Itamar, Arida estava plenamente ciente -ou quase- do abacaxi que o esperava à testa do BC. Confesso que, de tudo que vi na cobertura da imprensa sobre a demissão, o que mais me chamou a atenção foram as fotos com a expressão incontida e contagiante de alívio estampada no rosto do presidente demissionário do BC no exato momento em que anunciava sua saída do cargo.
Em artigo publicado na ``Gazeta Mercantil" três meses depois da reforma monetária que criou o real, Arida manifestava a esperança de que o Brasil virasse a página do ciclo dos planos de estabilização fracassados. ``O restabelecimento da confiança plena na estabilidade do padrão monetário", sustentava, ``fará com que a agenda da política econômica se desloque dos problemas clássicos de manejo da demanda agregada para a questão da construção de um ambiente propício ao crescimento da oferta".
Às vésperas do primeiro ano do Real, estamos ainda longe de alcançar a mudança qualitativa de agenda que só a consolidação da estabilidade monetária em bases mais firmes e duradouras poderá trazer. O sinal mais evidente do retrocesso nos últimos meses é a constatação de que, mais uma vez, estamos atolados até o pescoço na macroeconomia do boato.
Nada indica, a essa altura, que as políticas monetária e cambial sofrerão mudanças significativas ou se tornarão mais vulneráveis a pressões políticas, pelo menos no curto prazo. Se isto for verdade, a figura do ministro Malan passa a ser o principal pára-raios da equipe. A questão é: por quanto tempo? A saída de Arida -talvez o principal baluarte de firmeza e racionalidade no governo FHC- não é certamente o fim do Real, mas é um sério revés.

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