São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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A diplomacia dos alfarrábios

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A julgar pelo volume de sua pasta, Guimarães Rosa (1908-1967) foi o mais prolífico correspondente de Alvaro Lins. A troca de cartas entre os dois teve início quando o escritor era conselheiro diplomático do Brasil em Paris. A mais antiga da coleção data de 13 de julho de 1949. Nela, Rosa faz um resumo de suas recentes viagens pelo norte da França e pelos Alpes, com sua mulher, Aracy, fala da mudança do casal para um apartamento mais espaçoso, no alinhado bairro parisiense de Auteuil, e da aquisição de uma gata persa, chamada Xizinha.
Nela, ainda, revela ter ficado desconcertado com a figura de Jean Genet e a adulação que lhe faziam os intelectuais parisienses. "O diabo do homem escreve bem, tem talento, o talento do demônio, comenta, mas "é sabidamente criminoso, ladrão, arrombador de casas e cofres (...) talvez seja assassino. E uma certa turma de artistas e literatos acolhe-o, festeja-o.
Boa parte das cartas é consumida por informações sobre compra e envio de livros ao Brasil. Rosa vivia percorrendo livrarias, sebos e buquinistas da margem do Sena atrás das encomendas que Lins lhe fazia. A situação se inverteu depois que o escritor voltou para o Brasil e o crítico foi servir ao Itamaraty em Lisboa. Numa carta de 1953, postada no Rio, Rosa pede a Lins que lhe compre todos os livros sobre aves e outros bichos, em português de Portugal. "Tenho idéia de escrever um `Bestiário Amoroso', aproveitando todas as minhas notas e impressões de jardins zoológicos, explica.
Quando a terceira edição de "Sagarana estava para sair, devidamente revista, Rosa enviou ao amigo e "descobridor uma longa e divertida carta, confessando o seu pavor pelas mancadas que os tipógrafos costumam cometer e os revisores deixam passar. As duas primeiras edições de "Sagarana não haviam escapado à regra. Triviais defeitos ortográficos, obviamente reconhecíveis (quisesse com ``z", veio com ``u", por exemplo) não o amofinavam. Não dispondo do revisor ideal (Aurélio Buarque de Hollanda), meteu-se ele próprio a corrigir os erros essenciais e a recuperar os que havia cometido de propósito.
"No conto `São Marcos', a certa altura, escrevo: `mesmo o cipó-quebrador, que aperta e faz estalarem os galhos de uma árvore anônima'. Ora, eu estudei, há muito tempo, que, depois dos verbos ver, ouvir, sentir, mandar, fazer e deixar, a gramática ordena o infinito impessoal. Mas, ali, em nome da sintaxe ideológica e do direito de bandeirante, o que estou fazendo é entrar deliberadamente em rebeldia e hastear o pavilhão negro de pirata. A bem da expressão `viva', acho que a gente pode e deve tentar extrair todos os imagináveis proveitos dessa nossa peculiaridade feliz, desse belo idiotismo que é o infinito flexionado. Porque sinto que `faz estalar' sugeriria o fato de todos os galhos estalando a um tempo, conjuntamente, coletivamente, e que, de outro modo, `fazer estalarem' permite ou tende a exprimir a idéia de estalos destacados, independentes ou sucessivos, ora um galho, ora outro.
Em matéria de sintaxe ideológica, Rosa foi um bandeirante (e um pirata) e tanto.

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