São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"Você salvou Eça de uma condenação idiota"

São Paulo
9 de novembro de 1940
Caro amigo Alvaro Lins,
enfim -que surpresa agradável- seu "Eça chegou! Devorei-o de uma só vez; ontem o li novamente, e passei um bom tempo a refletir sobre ele. Tenho dúvidas, no entanto, se minha resposta estará à altura de seu admirável trabalho. Mas sua amável dedicação o exige; obriga-me a uma resposta bastante sincera, e lhe peço antes de tudo que considere meus elogios não como palavras de lisonja, mas como o apreço merecido de seu extraordinário poder.
Eça é um autor difícil, como eu mesmo pude sentir. Sua inteligência é poderosa, mas incoerente; ela refulge em mil facetas, e se a inteligência excita, por si mesma, as contradições do mundo, tal incompreensibilidade é própria para enfurecer os imbecis -razão pela qual tudo o que li sobre Eça não passa de lamentável panfleto. Parece-me que até mesmo Fidelino de Figueiredo prende-se a uma imparcialidade que deforma, ela própria, um autor tão subjetivo como Eça. Sua primeira tarefa, portanto, referia-se à análise literária. Essa parte do livro -a parte dominante- é excelente, talvez mesmo definitiva. Admiro sobretudo a "apologia infinitamente hábil do "Crime do Padre Amaro, onde posso comprovar, bastante satisfeito, que nossas convicções sobre o valor possível de uma obra tendenciosa (se ela ultrapassa a vontade do autor) coincidem perfeitamente; duvido, porém, que você convencerá os inconvencíveis.
Do mesmo modo, a explicação do sonho na "Relíquia -embora de certo modo um combate contra um moinho de vento- possui o grande mérito de aplicar, sem preconceitos, a psicologia moderna. Essa falta de preconceitos é a principal força que brilha na admirável explicação da "Correspondência de Fradique Mendes. Nela, o vínculo entre análise literária e análise psicológica iguala a um St. Beuve. É desnecessário dizer que seu domínio soberano dos materiais e recursos críticos desmente vitoriosamente sua qualificação, demasiado modesta, de autodidata. Um autodidata pode conseguir formular algumas idéias, mas jamais chegará a organizar um trabalho tão completo como seu excelente livro.
Ao citar o nome de St.-Beuve, quero deixar claro que você igualou os melhores modelos franceses. Seu livro recorda-me o "Marcel Proust de Léon Pierre-Quint; sob um outro aspecto, o "Baudelaire de Stanislas de Lumet, aspecto de que tratarei mais tarde.
Você situou Eça muito bem dentro das correntes da literatura universal -na corrente do realismo ambíguo que nasce do romantismo e retorna, por fim, ao mesmo romantismo. Gostaria, porém, que você tivesse aprofundado um pouco mais a questão. O romantismo é um fenômeno muito complexo; sua análise será uma das primeiras etapas do trabalho que tenho imaginado ultimamente. No presente caso, o problema torna-se ainda mais complicado pois se trata do romantismo português, romantismo de uma nação que não conheceu o Renascimento e não é, portanto, européia- ao contrário do Brasil literário, iniciado pelo romantismo e, por isso mesmo, mais europeu que Portugal.
A particularidade desse romantismo português manifesta-se sobretudo na figura inextricável de Camilo Castelo Branco, de quem Eça é o êmulo (e continuador involuntário). Eça de Queiroz era português, profundamente português, mas não queria sê-lo. Essa oposição não é rara; ela induz os fracos ao compromisso, e os fortes à tragédia. Eça era grande demais para um compromisso qualquer, mas a sentimentalidade da raça excluía a tragédia (as palavras que você dedica a Antero de Quental são excelentes). Como sair desse impasse? Permita-me chamar-lhe a atenção para a aversão (inglesa) à Inglaterra vitoriana. O combate contra o sentimentalismo nacional constitui, por assim dizer, toda a obra do grande romancista George Meredith, cujos romances se prestariam às mais surpreendentes analogias com Eça. Meredith, naturalmente, não possuía nem um pouco da lucidez mediterrânea do português; sua alma estava repleta das brumas boreais. Mas seus aforismos cortantes revelam uma certa veia satírica; em "An Idea on Comedy, ele descreve sua posição hipócrita diante da sociedade e tradição inglesas; suas observações inexoráveis lançam uma luz oblíqua e altera as proporções: somos compelidos a rir. Eça riu.
Não é próprio à sua arte fazê-lo, mas é um de seus efeitos. E isso me recorda que aguardo de sua parte (talvez na segunda edição) o estudo das influências de Eça. Você mostrou muito bem que as influências sobre Eça não foram decisivas, que ele é sui generis. O estudo da influência exercida (ou não exercida!) por ele teria um valor sociológico muito interessante. Mas talvez ele ultrapassasse a estrutura de seu livro, tão completo em si mesmo.
Seja como for, esse estudo pertenceria ao gênero histórico: as obras de Eça têm o mesmo destino das demais obras de arte, incompreendidas e indestrutíveis. A respeito desses valores históricos, seu livro cumpre uma tarefa de atualidade incomparável. Você salvou Eça de uma condenação imbecil, incorporou-o ao patrimônio espiritual da humanidade católica. Um trabalho como esse dá testemunho de uma coragem infinitamente mais valiosa do que suas extraordinárias qualidades de inteligência, o que me faz aguardar seu futuro leadership intelectual. Felicito-o cordialmente; se o futuro nos reserva tais vitórias, não teremos vivido em vão.
Cada dia mais agradeço a sorte de tê-lo conhecido. Minha última carta, em sua parte pessoal, foi destinada a conservar o total desprendimento de nossa jovem amizade; esteja certo, caro amigo, que disso nunca me esquecerei.
Seu sincero admirador
Otto Maria Carpeaux

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