São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"Eu já nasci com um cadeado na boca"

Paris, 19 de fevereiro de 1950
Meu caro Alvaro,
Esta é do "Amigo-da-Onça: você aí estudando sério, e eu vindo puxar sua atenção para um episódio sem graça nenhuma. Comece perdoando o despropósito. E veja a quantas se expõe um que à prudência se confia.
Você leu, no "Letras e Artes de 5 do corrente, uma reportagem de Luiz Wiznitzer, em que me puseram como comparsa? Pois bem, na parte que me pega, a entrêva é manca e torta, absurda: não houve. Mais a lei que eu nessa fala-fala, figura no Credo o governador Pôncio Pilatos. Dela me lavo as mãos, lavo os pés, lavo a cara. "Não me chamo Manoel, não moro em Niterói, não tenho nada com o peixe alheio. Conto a você a história.
Uma tarde, ao sairmos da embaixada, Cícero Dias me convidou para ir ver em seu atelier, na Rive Gauche, uns quadros novos, em dia frio, dia escuro de entre outono e inverno, um dia desses em que a gente não quer ir logo para casa, mesmo porque o tempo nos obriga a ficar entre paredes permanentes. Entrei com Cícero no chevrolé dele, e fomos. No caminho, Cícero me disse que Wiznitzer lá iria também. (Você conhece Wiznitzer? É um rapazinho austríaco, mal definido, estudado e esforçado, que fala seu tanto de português; já esteve no Brasil, e anda por aqui numa "casca penosa, "lambendo embira, como na roça se diz, apesar de inteligente, autor inclusive de um trabalho interessante sobre a Mitomania, e de se ocupar, no momento, com a tradução de um livro de Heidegger. Trato-o bem, e, a pedido dele, falei com o Paulo Duarte para que o aceitasse como correspondente do "Estado de S. Paulo).
Bem, já no atelier, Cícero me disse que Wiznitzer queria entrevistar-nos, conjuntamente, aos dois, para "Letras e Artes. Recusei, no pé do momento, e por alguns motivos: não estava disposto; o atelier gelava, só vagarosamente se aquecendo; entrevista a dois, para pequeno espaço em jornal, não é da minha crença; o português de Wiznitzer não afiançava a façanha; e, a rigor, em hora pacífica, acho que o seguro é a gente responder, por escrito, a perguntas escritas. Wiznitzer concordou, agradecendo minha promessa e ficando de trazer-me o rol das perguntas, dia qualquer, dias depois. Cícero assumiu então a tribuna, entrando a proferir.
Naturalmente, nas folgas, eu tinha às vezes de abrir a boca, quando nada para arredar de mim o fogo dos combatentes. Disse coisas sem pose nem peso, mas não bobagens completas, nem havia por quê. Chegou um fotógrafo, cunhado de Wiznitzer. Pediram-me em retrato e assenti, cuidando apenas figurar de paraninfo e pôr meu vulto concreto contra o colorido fundo de telas abstratas. Dali, saímos com o maior sossego, Cícero me levando direto para casa. Malaparte? Eluard? Não houveram. Fantasias, prosinha de ficção, normais e inofensivos ornatos.
Você sabe que eu já nasci com cadeado na boca, e que voluntariamente não me exponho, a não ser por deliberado projeto. Pois bem, fiz mais. Ao despedir-me de Wiznitzer, não sei que raça de aviso meu anjo da guarda me soprou, que tive a precaução de dizer a Wiznitzer que: mesmo se, para movimentar a entrevista com Cícero, ele tocasse circunstancialmente em mim ou no meu nome, que eu fazia questão de ver o escrito, antes de ser mandado para o Rio.
Wiznitzer assegurou-me que isso seria feito. Fiquei tranquilo.
E, agora, sai a entrevista. Amigos meus me enviam o recorte de jornal. E é aquela maluqueira. Todas as respostas que ele pôs em minha boca são trechos de conversa off the record, e ainda assim incompletas, parcialmente reproduzidas, mutiladas ou hidratadas, pífias, chochas. Perfeito retrato de um Guimarães Rosa imbecilizado, contraposto ao brilho de Cícero. Bem, isso não faz mal, não bole no meu bolso nem arranha fundo minha vaidade. Acho que a intenção de Wiznitzer não era má. Não me zango com ele, nem contra ele, que anda em apertos, desejo fazer carga. Seu único ato errado foi não ter cumprido o que prometera, e que não podia deixar de cumprir.
O grave, o sério, é aquela "resposta sobre intercâmbio cultural: assunto em que nenhum de nós falou, direta nem indiretamente, nem durante, nem antes, nem depois da entrevista; coisa que jamais disse e jamais pensei em tempo algum. Pode ser que o fato de me encontrar longe do Brasil e de seu ambiente jornalístico-literário, em que nunca fui vaqueano, esteja a fazer com que eu subjectivize demais uma peripécia menos significante, dando-lhe exageradas proporções; de qualquer maneira, no caso, à primeira vista corriqueiro, vejo alguma gravidade potencial -da que cabe num grão de arroz, quando sufoca a gente nos brônquios, ou da que vem no bago de chumbo que alveja olho de cidadão. Primeiro que tudo, há o aspecto cretino da história: quem lê a entrevista, não pode deixar de fazer de mim a idéia pior possível: a de um idiota desfrutável, que, teimando em guardar estrito mutismo, a respeito de inofensivos assuntos gerais, acaba respondendo inconvenientemente e imprudentemente à única pergunta comprometedora, à única pergunta "temporal que o repórter lhe fez.
Depois, a "resposta vai contra a minha maneira de não-pensar no assunto. Jamais iria eu referir-me daquele modo a "velhos célebres, nem preconizar que restrinjam o número dos estudantes que aqui vêm. Um dos meus mais firmes princípios é justamente o de nunca ofender coletividades, agrupamentos humanos, ou classe. Como funcionário diplomático, sei como e porque e para que se guarda reserva, profissionalmente.
Não estou incumbido dos assuntos de intercâmbio cultural, e espontaneamente não cuido deles, para isso não tenho vocação nem tempo. Aquela linguagem maligna, não é a que eu uso. E, tendo eu mesmo 42 anos, não iria por mim mesmo excluir-me da "classe favorecida na resposta. Você sabe o que eu acho, em matéria de "gerações: geração de um escritor é a obra que ele produz. Você sabe, também, que respeito os velhos, eu que pretendo um dia entrar para a Academia. Mas, nem é preciso que eu mostre a inverossimilhança da "resposta: basta que afirme a você que opinião tão estrambótica jamais me passou pela cabeça.
Agora, historio o que houve, après.
Wiznitzer mandou-me duas cartas, e veio, em pessoa, oferecer-me todas as explicações, reparações e desculpas. Escreveu ao Jorge Lacerda, corrigindo a coisa. Isso foi no dia 10. A 11, mandei este telegrama a Jorge Lacerda, com resposta paga (20 palavras):
"Rogo informar urgente se rigorosamente exato texto integral reportagem Wiznitzer em que fui citado stop cordialmente
a) Guimarães Rosa.
Como a resposta demorou, mandei, a 14, a carta de que aqui vai cópia. Hoje, recebo este telegrama de J. Lacerda, que está em Florianópolis:
"Texto original traduzido Rio não podendo esclarecer daqui quanto exatidão motivo férias cordialmente - a) Lacerda.
Antes que me esqueça: Wiznitzer -afirmou-me nada ter mandado para o Rio, daquilo, que a "resposta foi enxertada lá, na Redação de "Letras e Artes. Seria possível tanta falta de honestidade? Se houve isso, estou certo de que Jorge Lacerda ignorou o fato, pois tenho-o na melhor conta, como pessoa e como jornalista.
Aliás, a única coisa que me interessa é que "Letras e Artes publique na íntegra a minha carta. A estada de Lacerda em Santa Catarina vai atrasar essa publicação, o que ainda é mais aborrecido. O que houve foi inominável, você não acha? Se não fosse a atitude humilde do Wiznitzer -pronto, imediatamente, a qualquer retratação, e não fosse também estar o pobre rapaz em lutas e dificuldades, que me dão pena, e eu, para começo de conversa, teria, tocado nele um processo em regra, a fim de que tudo se esclarecesse barulhentamente. Saía assim um kravchenko caricato e mirim, mas não deixaria dúvida quanto à sem-vergonhice de que fui vítima -isto que nunca pensei fosse possível: inventarem, inteirinha, uma opinião, e atribuírem-na a quem está aqui quieto no seu canto.
Hoje mesmo, escrevo a Jorge Lacerda outra carta, insistindo quanto à publicação da primeira. E, agora, Alvaro, sem querer tomar muito do seu tempo, mas por estar você aí, forte e informado, em pleno campo dos acontecimentos, não será abuso meu pedir a você que controle por mim tudo o que houver ou que não houver, a esse respeito? Você não imagina quanto ficarei grato, por qualquer palavra sua. Talvez, se você achar bem, valeria a pena, depois que "Letras e Artes publiquem minha carta, arranjar-se uma nota no "Correio ou em "Jornal das Letras, sobre o caso. Não estou querendo demais?
P.S. (CONFIDENCIAL) - Roberto conseguiu obter os "Cahiers de Proust microfilmados, e vão, segunda-feira que vem, numa lata, levados pelo sr. Edmundo Cid, que os entregará a você. É para você utilizá-lo como quiser, mas na maior "moita, sem miga de divulgar o assunto. "Oficialmente, quem vai levá-los é o Alceu Amoroso Lima, que estava presente na hora em que o Roberto arranjou a coisa. Quando Amoroso Lima chegar aí, em abril, você dará a ele a lata com os microfilmes, que por ele serão entregues solenemente ao Itamaraty, que os destinará provavelmente à Biblioteca Nacional. Trata-se dos "Cahiers e não dos "Carnets. Roberto, que voou hoje para Copenhague onde passará uma semana, pediu-me que eu transmitisse a você esta notícia, que espero dê prazer a você.
Alvaro, meu abraço enorme.
Aracy, que aqui ao meu lado espera para irmos ao cinema, junta às minhas suas lembranças para Heloísa e Você. O inverno parece que passou, faz um dia de primavera, dá prazer à gente ver o sol, luz forte; tem até lugares azuis, no céu. Se eu não pensasse na Itália, estaria contente.
Ando com vontade de escrever a você uma carta grande, mas menos cacete que esta, uma carta contando coisas de Paris, que avivem em vocês as saudades. E repetindo a vocês a invariável amizade dos...
Guimarães Rosas

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