São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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O esteta da província

Aos 89 anos, Jurandir Ferreira lança livro inédito

DANIEL PIZA
ENVIADO ESPECIAL A POÇOS DE CALDAS

O autor-revelação de 1994 tem 89 anos e o livro que o revelou foi escrito na década de 50.
Na verdade, ``Um Ladrão de Guarda-chuvas", de Jurandir Ferreira, ganhador no ano passado do Prêmio Guimarães Rosa de melhor romance (concedido em Belo Horizonte), apenas chamou a atenção de um público maior para o cronista de ``Da Quieta Substância dos Dias" (Instituto Moreira Salles, 1991), um livro que se tornou cultuado em certos círculos.
``Um Ladrão de Guarda-chuvas", que será lançado no dia 10 em co-edição da editora Nova Alexandria e do Instituto Moreira Salles, jazia na gaveta de Ferreira desde os anos 50 como o único inédito dos três romances que escreveu (os outros dois, ``O Céu Entre Montanhas" e ``Telêmaco", foram publicados pela Saraiva naquela década e nunca reeditados).
Em 1994, instado por um amigo, Ferreira decidiu concorrer ao prêmio com aquele manuscrito, no qual fez retoques mínimos. Venceu. ``Eu não esperava", diz com sinceridade o escritor, que recebeu a Folha em sua casa em Poços de Caldas (MG) no final de maio.
Com aparência de 70 anos e memória quase impecável, Ferreira tem biografia curiosa. Como o poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro também, foi obrigado pelo pai a estudar farmácia. Mas, ao contrário de Drummond, que nunca a exerceu, foi farmacêutico por toda a vida.
Seguiu sua vocação paralelamente. Trabalhou como jornalista, escreveu críticas literárias, começou a escrever contos, depois se tornou cronista e partiu para o romance. Na crônica, atingiu um grau de excelência que o crítico Antonio Candido, conterrâneo e amigo de Ferreira, apontou com a costumeira perspicácia no prefácio de ``Da Quieta Substância dos Dias":
``O que chama desde logo a atenção nos seus escritos é a perfeição formal. Poucos escritores brasileiros terão domínio tão seguro sobre o instrumento difícil que é a nossa língua. É admirável nele tanto a maneira de construir a frase, com uma perícia sintática de fazer inveja, quanto a capacidade de encontrar o melhor vocábulo, no momento mais adequado."
(Considere: trata-se de Antonio Candido ``invejando" a perícia sintática de um escritor -ele que confecciona o mais cristalino texto crítico do país.)
Para Candido, Ferreira ``se exprime com mais segurança no quadro do que no painel, e talvez mais ainda na miniatura do que no quadro, como convém aos aperfeiçoadores, àqueles para os quais a linguagem é em grande parte o seu próprio objeto". O leitor de ``Um Ladrão de Guarda-chuvas" tem de manter essa observação em mente (leia resenha ao lado).
E, ainda segundo o prefácio de Candido, a linguagem de Jurandir Ferreira, ``livre de subserviência às modas, refinada no curso de leituras essenciais e no exemplo dos bons modelos, tem a consistência dos textos lapidares e o cunho das soluções pessoais. É tradicional sendo moderna."
Quais as leituras e modelos de Ferreira? Os modelos, ele não nega, são três, imediatamente detectáveis em seu estilo: o francês Anatole France (1844-1924), o brasileiro Machado de Assis (1839-1908) e o português Eça de Queirós (1845-1900).
Eram esses autores que Ferreira lia na juventude, entre um tubo de ensaio e outro. Mas ele cita alguns outros brasileiros, entre eles um que julga ``dos maiores da nossa literatura": Monteiro Lobato (1882-1948). Para Ferreira, Lobato escrevia muito bem e era grande contista e grande crítico. O estilo carbonário de Lobato, porém, não tem influência visível na prosa serena, embora incisiva, de Ferreira.
Ferreira também cita entre brasileiros Erico Verissimo, a quem conheceu, e Rubem Braga. Mas, caracteristicamente, credita sua ``perícia sintática" não só a esses bons exemplos, mas também aos professores de português que teve em Poços, como Eugênio Rubião, pai do poeta Murilo Rubião.
Por que ``caracteristicamente"? Porque Jurandir Ferreira é a expressão mais interessante desse sujeito que hoje chamam, pejorativamente, de ``provinciano". A epígrafe de ``Da Quieta Substância dos Dias", não à toa, é do dramaturgo francês Jean-Louis Barrault: ``Somos todos um cidadão do mundo e um homem de sua aldeia". A ``aldeia" de Jurandir Ferreira é seu mundo.
E nosso também. As crônicas de ``Da Quieta Substância dos Dias", escritas ao longo de 40 anos nos jornais de Poços, formam um painel da decadência da cidade moderna. E cidade moderna significa, para Ferreira, opressiva, feia, suja e barulhenta -numa palavra, selvagem. Quem discorda?
Ferreira, nessas crônicas, protesta contra arranha-céus, automóveis e tudo de anti-humano que a chamada modernidade trouxe, sem a necessária contrapartida humana. Ele é um homem dos tempos em que, quando se descrevia uma pessoa como ``urbana", o que se queria elogiar eram seus modos corteses e dignos. ``A cidade moderna é a cidade de onde tiraram a natureza", diz Ferreira.
O assunto de ``Um Ladrão de Guarda-chuvas" não é a cidade Poços de Caldas e sua gente, decaindo como arremedo de metrópole, mas não deixa de ter a ver. Contando a história de um homem de letras nacionalmente famoso e sua relação com o cicerone aldeão, trata da negação do outro. E negação do outro, segundo Ferreira, é o que mais se fomenta hoje.
Há toques biográficos na narrativa, confessa Ferreira, que recebeu muitos escritores (como Verissimo) em Poços. A história do sumiço do guarda-chuva -que leva o cicerone a agir com um outro homem do mesmo modo como o visitante age com ele- é inspirada em uma verdadeira. Mas Ferreira diz que Hallim-Dubois, o visitante, não é ninguém em especial.
O tema surgiu de modo genérico. ``Eu tinha um amigo que dizia que o contato pessoal com um grande escritor é sempre decepcionante", conta Ferreira.
Mas o livro é bem mais que isso. Mostra que o homem pode ser provinciano onde quer que more, bastando que lhe roubem o guarda-chuva. Já Jurandir Ferreira, escritor e homem, canta na chuva. Está além de preconceitos.

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