São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma crônica do egoísmo cotidiano

DANIEL PIZA
DO ENVIADO ESPECIAL A POÇOS DE CALDAS

``Um Ladrão de Guarda-chuvas" é um grande livro à maneira como os livros eram grandes no século 19: fazendo, da aldeia, mundo. Com tintas realistas, pincela cores locais e, com meios-tons, põe a trama na moldura universal.
E na paisagem brasileira, antes de mais nada. Jurandir Ferreira, em ``Um Ladrão de Guarda-chuvas", dá vida a uma descrição de Sérgio Buarque de Holanda em ``Raízes do Brasil":
``Nossos homens de idéias eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim conspirava para uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. (...) Era o modo de não nos rebaixarmos, de não sacrificarmos nossas personalidades no contato de coisas mesquinhas e desprezíveis".
A narrativa corre em dois planos. No central, um escritor de renome, autor de uma obra em quatro volumes sobre Freud, chega a Poços de Caldas para dar conferência. O narrador do livro é o responsável pela recepção.
No plano secundário, o narrador perde seu guarda-chuva e começa a desconfiar de Oscar, um abnegado que namora a filha de um pai ciumento e tirano.
Dubois, o escritor, é frio e distante, incapaz de perguntar ``Como vai?" ao narrador. Embora não seja dito, supõe-se que o desprezo é pelo ``provincianismo" do narrador. Este lhe paga todos os luxos, do próprio bolso -inclusive um jantar de champignons que foi trabalhoso providenciar. E eis que os champignons fazem o bambambã passar mal, faltar à conferência e ir embora no dia seguinte, deixando o narrador endividado.
À medida que Dubois explora o narrador, este, a pretexto do roubo do guarda-chuva (no qual o papa teria tocado, segundo crê), acusa Oscar de pecados cada vez maiores. Não lhe dá o menor crédito, como Dubois não lhe dá a menor pelota. O que passa por humilhação face a Dubois, cobra em arrogância contra Oscar.
Acompanhando essa história irônica, cheia de incidentes patéticos e povoada por uma gente mau-caráter, o leitor jamais vê claramente os personagens; apenas suspeita dos motivos por que agem e do que pensam uns a respeito dos outros. E termina essa história machadiana sem saber quem roubou o guarda-chuva, num livro dedicado a ``todos os ladrões de guarda-chuvas do mundo".
O guarda-chuva, intui-se, conferia respeitabilidade à figura que o narrador ostentava diante do mundo. Mas respeitabilidade, sabe-se, é uma palavra virtuosa para ocultar covardia e egoísmo.
Ferreira cria essa equação entre personagens com a capacidade sintética de um contista e a desenvolve em pequenos episódios com o humor e objetividade de um cronista. Há cenas magistrais, como a do exorcismo, a da visita a Dubois no hospital e a final. Tudo é ligeiro e o drama nunca aparece consistente, mas o livro tem o número de páginas que deveria ter: 117.
(DP)

Texto Anterior: O esteta da província
Próximo Texto: As criaturas indomáveis de Moacyr Scliar
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.