São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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As criaturas indomáveis de Moacyr Scliar

JOÃO GILBERTO NOLL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eis um livro que não se amedronta diante da vertiginosa taxa de complexidade de seus personagens. Uma novela que solta suas criaturas em sua condição indomável, sem procurar agradar o olho expectante do leitor com a promessa de escorreitas interpretações.
Digamos que seria de uma gritante ingenuidade, hoje, a leitura que esperasse deste, como de outros livros de Scliar, tão-só o retrato ``irretocável" dos guetos e descaminhos da colonização judaica em Porto Alegre.
Aqui encontramos uma especialíssima mulher judia (a personagem-título), filha de um pequeno comerciante afastado de seus laços étnicos e aluna, na adolescência, de um colégio de freiras, principalmente para que conheça o latim, a língua amada pelo pai...
O que quer esta mulher? Ela é aparentemente indecifrável, já que seus passos parecem seguir alguma coisa turva, produzida talvez por uma espécie de paganismo difusamente redentor: adolescente, sonha em suas noites não-dormidas que está revivendo um cristianismo estertorante e elementar, absolutamente fora do repertório daquele colégio do distante bairro do Partenon (desta vez a liturgia romanesca de Scliar não se passa no Bom Fim, onde se situa a colônia judaica).
Acontece então um surto religioso medularmente feminino, devotado à figura da Virgem que se revela na própria pele de Raquel.
A sombra de Jeová começa a crescer na fase adulta da protagonista -e esta sombra atua através de Miguel, um personagem socialmente quase repulsivo, com temporadas voluntárias num hospício (digamos, um baixo-profeta) e que aos domingos transborda-se em misterioso elã, anos a fio, na construção de uma sinagoga praticamente ausente da atenção dos outros.
Que entendimento este protetor silencioso de Raquel pretende do mundo? Claro, ele almeja a continuidade do impulso ancestral -o de dar morada para o Livro, para o Verbo libertador da escravidão inerente à condição humana.
Nesta literatura mais de câmara que propriamente intimista, a sintonia fina com a matéria divina não se faz, como em Clarice (principalmente a de ``A Paixão Segundo G.H."), de uma forma fulminantemente ``abjeta", mas numa relação conflitiva e diária com as forças anômalas da comunidade -como a do louco, por exemplo- e com a esmagadora presença da nossa animalidade.
É assim que Raquel é seguida por bairros e bairros por um pujante cachorro... é assim que a personagem se "adona do bicho, passando a viver com ele quase que num fluido tônico que acabará em fúria e sangue, obrigando os vizinhos a degolarem o animal.
Aliás, esta desregulada atração pela anatomia ``pré-humana" vai encontrar mais tarde em Scliar o seu momento extremado em ``O Centauro no Jardim" -possivelmente um dos mais provocantes romances da atualidade brasileira.
Neste universo de Raquel, feito de dissimuladas disfunções, emerge enfim de um golpe a veia amorosa. É um fascínio irreprimível por uma certa impropriedade congênita, escondida nas aparências sadias do mundo, que faz com que ela se apaixone por um coxo (marido de uma antiga amiga do colégio). Um homem que acaba escolhendo viver submerso nas águas barrentas do Guaíba. Sim, mais do que morrer, ele escolhe uma outra conformação de vida. Vira uma espécie de anfíbio diante de uma insolucionável divisão entre a mulher oficial e Raquel.
O que Scliar está a nos mostrar é da esfera da ficção fantástica? Hoje, alguns anos depois do lançamento desta pequena novela (originalmente publicada em 1978 e recém-editada pela L&PM), talvez já não se possa falar de sua obra com códigos assim tão firmes.
Mais rico e variado, quem sabe, seria observar este mundo de ``deformações" através da esquizofrenização do olhar de suas próprias criaturas. Uma perspectiva de quem não consegue aderir às formas ordenadas da existência, estas formas que recalcam enfim as inquietações mais rudimentares da constituição humana, em troca do controle e do apaziguamento de tudo.
É bom que se note que ``os deuses de Raquel" não se submetem a nenhuma superprodução bíblica, pois esta fábula não nasce dos protagonistas masculinos do autor, tantas vezes sanguíneos, exagerados, de imaginação muscular. Não, ela nasce exemplarmente de uma mulher que aprende página a página uma arte de pendor furtivo, já que é obrigada a uma clandestinidade interior, provinda do extravio daquilo que poderia formulá-la para o mundo -o amor, o antigo delírio cristão, a própria condição judaica.
No entanto, ao final, a escrita se eleva: ``Amparo-a, antes que caia, tomo-a em meus braços e iniciamos a ascenção".
E o leitor fica com a impressão de ter saído não de um relato ficcional, mas de uma certa melodia talmúdica -breve e indispensavelmente solitária...

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