São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Um caso de homofobia negra

LUIZ MOTT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nunca concordei com o ditado baiano que diz: ``A melhor resposta é a que não se dá". Sempre pautei minha vida e minha obra -seja intelectual, seja na militância pelos direitos humanos- pela busca da verdade e da justiça. Nunca me calei! Prova disto são as centenas de cartas de protesto contra o preconceito que escrevi aos jornais de todo país; as diversas passeatas que liderei e importantes campanhas que encabecei pelos direitos humanos.
Um pequenino exemplo do intelectual ``doublé" de militante: quando aqui em Salvador um vereador crente encetou uma santa cruzada contra o candomblé, acusando-o de praticar sacrifícios humanos, mesmo sendo eu ateísta, revoltou-me a calúnia histórica. Imediatamente escrevi um artigo, publicado no ``Diário Oficial Leitura de S. Paulo" (1989), onde, com rica documentação histórica, comprovei que não fazia parte da tradição dos orixás a prática de sacrifícios humanos.
A injustiça, a mentira, a opressão sempre me revoltaram, daí porque tornei-me, graças a quase duas décadas de pesquisa histórica e militância ininterruptas, o autor brasileiro que reúne o maior número de publicações pelo resgate histórico de nossos quatro principais segmentos esquecidos da história colonial -índios, negros, mulheres e homossexuais.
Meu ensaio ``Era Zumbi Homossexual?", divulgado na mídia nacional, serviu de pretexto para Fernando Conceição atacar-me tão injusta e caluniosamente (Mais! de 28/05), que, a bem da verdade, e para salvaguardar os direitos humanos de mais de 15 milhões de brasileiros homossexuais, dos quais mais da metade da mesma cor de Zumbi, sou obrigado a dar esta derradeira resposta e pôr um ponto final nesta questão.
Por trás da repulsa à possibilidade de um herói negro ter amado o mesmo sexo, se esconde o mais ignóbil preconceito racista e sexista, que pretende, com adulteração de informações, negar a presença da homossexualidade na mãe África antes da chegada do homem branco. Eis o meu texto: ``Uma das cinco pistas sugestivas de que Zumbi provavelmente era homossexual é o fato de que nos quilombos de Angola, liderados pelos Jagas, a homossexualidade tinha numerosos adeptos, os famosos quimbanda."
A esta minha pista, eis o comentário destrambelhado do aluno da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP: ``Aqui, Mott, no seu delírio anti-heterossexual, perdeu totalmente as estribeiras, revelando um estúpido (ou premeditado) desconhecimento quando o assunto é África... O termo quimbanda (significa) o curandeiro do lugar, nada a princípio tendo a ver com homossexual".
Eu sou o estúpido e ignorante, ele o douto e sábio: ``Magister dixit!" Eis, porém, o que ensina o autor da ``História Geral das Guerras Angolanas", no ano de 1681 -na mesma década em que Zumbi defendia seu quilombo contra os opressores: ``Há também entre o gentio de Angola muita sodomia, tendo uns com outros suas imundícies e sujidades, vestindo como mulheres. E lhes chamaram pelo nome da terra, quimbandas, os quais no dito distrito ou terras onde os há, têm muita comunicação uns com outros. E todo o mais gentio os respeita e os não ofendem em coisa alguma... E andam sempre de barba raspada, que parecem capões, vestindo como mulheres" (Cadornega, pág. 259).
Outro autor, Padre Antônio Cavazzi, também contemporâneo de Zumbi, desmascara a cegueira de quem, simplesmente por ser negróide, se arvora em dono da verdade sobre a África: em sua ``Descrição Histórica dos Reinos do Congo, Angola e Matamba", Padre Cavazzi, diz que ``os nganga-ia-quimbanda, sacerdotes chefes dos sacrifício, vestem fato e usam maneiras e porte de mulher, chamando-se a grande mãe... e entre os moradores de Pentápolis (Sodoma e Gomorra) teriam o primeiro lugar" (1645-1670, pág. 201).
Além destas duas fontes tão eloquentes que confirmam inquestionavelmente que o estúpido Mott estava certo e o inteligente Fernando Conceição redondamente enganado, ofereço um derradeiro documento, para que o leitor decida quem é o ``cara-de-pau e falsário da Academia", desculpando-me por transcrever expressão tão chinfrim da lavra deste meu opositor.
Já em 1591 é denunciado à Santa Inquisição o escravo Francisco Manicongo, morador próximo à Santa Casa de Salvador, ``que tinha fama entre os negros que era somítigo". Seu delator disse ``que sabia em Angola e Congo, nas quais terras ele denunciante andou muito tempo e tem muita experiência delas... os negros somítigos que no pecado nefando servem de mulheres pacientes chamam na língua de Angola e Congo jimbandas, que quer dizer somítigos pacientes e que Francisco Manicongo traz um pano cingido assim como na sua terra em Congo trazem os somítigos pacientes..." (``Denunciações da Bahia", pág. 407).
Se eu ``perdi as estribeiras" ao fundamentar-me em fontes tão fidedignas para afirmar que quimbanda na língua dos jagas de Angola era sinônimo de homossexual, FC meteu as mãos pelos pés ao afirmar que ``deturpei os fatos". Quem usou o ``chutômetro" (sic): eu ou o ``soi disant" africanista, que com arrogância quer ensinar um padre-nosso errado ao vigário?
Com golpes baixos, o corifeu do ``Movimento Pelas Reparações" se sente totalmente à vontade para caluniar gravemente a quem de cujas hipóteses discorda, com a mesma leviandade como pretendeu justificar de politicamente correto o cínico calote que deu no restaurante cinco estrelas de São Paulo.
Em quem o leitor vai acreditar: na acusação gratuita do raivoso FC de que ``enquanto antropólogo, Mott é acolhido entre seus pares com pouca seriedade" ou nas incontáveis citações e/ou elogios à minha obra assinados por intelectuais do porte de Thales de Azevedo, Jacob Gorender, João Reis, Clóvis Moura, Pedro Calmon, Stuart Schwartz, Katia Mattoso, Laura de Mello e Souza, Paulo Francis, Mário Maestri, Anita Novinsky, Ronaldo Vainfas, Jorge Amado, Manuela Carneiro da Cunha, Carlos Drummond de Andrade etc. Entre ser chamado pelo autor de ``Cala Boca Calabar" de fascista e ter sido eleito esse ano Secretário de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e receber o maior prêmio de direitos humanos dos homossexuais dos Estados Unidos, que o leitor também decida de que lado está a verdade e a justiça.
No fundo, o que explica tanta mentira, agressividade e falta de decoro acadêmico por parte do Coordenador do Núcleo de Consciência Negra da USP, é que, no fundo, bem no fundo de Fernando Conceição, reina a mais cruel homofobia -ódio doentio à homossexualidade. Só pode ter sido sua incontrolável homofobia que o levou a colocar no pelourinho da execração a um corajoso defensor dos direitos humanos, acadêmico trabalhador, que resgatou 750 páginas da biografia da primeira escritora africana de nossa terra, que divulgou o documento mais pungente das cruéis torturas contra seus irmãos de cor etc, etc.
É por não suportar a idéia de que na Mãe África a homossexualidade existia e era respeitada, que esse jovem estudante de pós-graduação arvora-se africanista dono da verdade, tentando destruir, não com documentos, mas com a ignorância do chicote, minha inquestionável documentação comprobatória de que quimbanda era sinônimo de ``chibungo", ``adé-dudu", ``adofiró", ``mona", ``galglo", ``acucibetó" -todos, termos de diferentes línguas africanas para descrever um mesmo personagem: o amante do mesmo sexo.
Homofóbico reincidente, FC deve ter sofrido um branco (!) em seu bestunto, quando deturpa a linguística bantu para evitar qualquer associação de Zumbi com a feminilidade, pois o intrigante onomástico ``Zumbi Sueca" -seja do quicongo significando ``espírito que desaparece", seja do português setecentista, com o mesmo significado de ``feminino do sueco", em ambas acepções o correto é mesmo sueca, e não ``sueco" como tentou nos engabelar o jornalista travestido em linguista afro-brasileiro.
Ao negar a homossexualidade indiscutível na África pré-colonial e espernear perante a hipótese de Zumbi ter sido gay, FC ignorantemente cai na armadilha dos fanáticos racistas que negam aos negróides a condição humana, pois entre nós, homens e mulheres, diferentemente dos irracionais, a orientação sexual não é determinada pelo instinto, mas fruto de complexa construção cultural. Ao negar aos africanos e seus descendentes a capacidade de terem também descoberto e praticado o ``amor que não ousava dizer o nome", FC reduz os negros à condição de sub-humanos e escravos da natureza.
A propósito: se Fernando Conceição vivesse na nova África do Sul, certamente seria processado pelos grupos homossexuais locais pelo crime de sexismo, pois Mandela foi suficientemente corajoso e iluminado para assinar a primeira constituição do mundo onde discriminar os homossexuais é crime inafiançável como o racismo.

LEIA MAIS
Sobre negros e sexualidade às págs. 5-11 e 5-12; sobre o Quilombo dos Palmares à pág. 5-16

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