São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Nossa luta contra os imbecis não será vã"

São Paulo
26 de setembro de 1940
Caro senhor,
não sei se seu tempo lhe permitirá ler essa carta, cuja única intenção é exprimir o sentimento de um modesto leitor de seus artigos.
Não se espante diante da palavra "sentimento. Não pretendo aborrecê-lo com os pequenos e grandes sofrimentos de um emigrado; na Europa, eu era exatamente o que o senhor é aqui; mas o destino de um escritor católico, perseguido pelos adversários e abandonado pelos "amigos, é o mesmo sob todos os céus; e não vale a pena lamentar aquilo que se passou e está perdido para sempre desde que deixei a Europa.
Aqui, a infelicidade de ser discriminado no meio comercial e rejeitado por uma intelectualidade que não se interessa por mim é redobrada pela tristeza de ser confundido com outros emigrantes, que mais se parecem a caixeiros-viajantes, e cujo representante "intelectual, um Zweig, é digno de todas as honrarias dessa mesma intelectualidade.
A obscuridade do céu é perfeita. Nessa obscuridade, seus artigos foram para mim como a luz de um farol.
Seus artigos são praticamente a última voz humana que me chegam aos ouvidos. Gostaria de ter acesso a seu livro sobre Eça de Queiroz, até agora inacessível a este pobre-diabo. Soube que está escrevendo no momento sobre meu velho amigo Gide. O senhor permanecerá vivo, enquanto escrever. O senhor não me conhece e talvez jamais compreenda o absurdo destes dias intermináveis, toda a tristeza desta solidão espiritual que me compele a agradecê-lo.
Devo ao senhor também outra coisa. Meu conhecimento das letras brasileiras limita-se a livros anteriores à guerra e a publicações acadêmico-oficiais que absolutamente não me agradam. Devo ao senhor (e um pouco ao livro de Nelson Werneck Sodré) o primeiro contato com uma outra faceta da literatura do Brasil, e ficaria muito grato, a propósito, se o senhor tivesse a bondade de indicar-me onde posso buscar informações sobre a evolução literária desde o armistício.
Propus-me a poupá-lo de qualquer assunto pessoal. Permita-me, no entanto, dizer-lhe que estimo enormemente sua luta contra a aliança da bestialidade com os imbecis. Uma longa e dolorosa experiência -sou certamente muito mais velho que o senhor- me faz pressentir que essa luta, nossa luta, será em vão. Aí está -um mundo pervertido, ingrato com a juventude; uma verdade tão banal quanto cruel em troca do consolo espiritual pelo qual lhe agradeço.
Aceite, caro senhor, meus melhores votos e o sentimento de uma fraternidade espiritual.
Otto Maria Carpeaux

Texto Anterior: Um destino indeterminado
Próximo Texto: "São Paulo é para mim um túmulo"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.