São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"São Paulo é para mim um túmulo"

São Paulo
31 de dezembro de 1940
Caro amigo Alvaro Lins,
durante a semana passada, não fiz outra coisa senão refletir. O resultado dessas meditações foi o seguinte: gostaria de revogar todo o conteúdo de minha última carta, retratar todas minhas hesitações e submeter-lhe -a você e a seus conselhos- as novas resoluções.
São Paulo é e continuará sendo para mim um túmulo. Mas vejo poucas vantagens no Rio. Sua generosa promessa de esforçar-se pela publicação de meus artigos me deixa confuso. Para falar a verdade, não gostaria de incomodá-lo em razão de alguns artigos que prometem certamente algum sucesso, mas sem maiores consequências -um impasse, enfim. É por este motivo que sua proposta sobre Recife interessa-me cada vez mais. Se puder desenvolver algum trabalho útil nessa cidade, se houver uma base para se viver, aí então todas as minhas dúvidas se calarão. Serei infinitamente grato de encontrar sob os trópicos um asilo hospitaleiro.
Resta apenas uma única dificuldade. É possível que o clima se mostre insuportável. Ademais, as circunstâncias mencionadas em minha última carta talvez me obriguem a deixar seu país. A idéia do México, aliás, é recorrente. E aqui começam as dificuldades.
Sinto-me profundamente embaraçado por incomodá-lo com a enumeração de dificuldades burocráticas. Embora sejam em maior ou menor medida indiferentes à vida do cidadão comum, elas representam um perigo constante na vida pouco comum de um refugiado. Você é o primeiro e único amigo que tive a felicidade de encontrar no Brasil. Já que é assim, deverá pagar com alguns incômodos essa honra duvidosa.
Naturalmente, será preciso abordar essa questão mexicana no Rio. Coisas desse tipo dificilmente se resolvem de longe, e a presença do embaixador no Rio parece ser uma ocasião excelente. Sem uma proteção de tal envergadura não conseguiremos obter os vistos mexicanos, e não tenho dúvidas de que suas palavras amigáveis serão coroadas de êxito.
Mas para viajar é necessário também um passaporte. Temos apenas passaportes austríacos, aliás já sem validade. Graças a uma recomendação do senhor Athayde e do Núncio apostólico, a polícia central do Rio está empenhada em nos conceder "passaportes apátridas, e é provável (embora não seja certo) que em breve tenhamos tais documentos em mãos. Mas ... (sempre este mas!) tudo isso exige nossa presença temporária no Rio, ou seja, duas viagens e uma estada, todas elas um pouco custosas. Além disso, as taxas que temos de pagar pelos passaportes são exorbitantes!
Em conclusão: providenciar tais passaportes, caso sejam realmente indispensáveis; mas deixá-los de lado, se pudermos evitar tudo isso. Corre o boato que não é preciso um passaporte válido para ingressar em território mexicano. Este é um ponto de importância decisiva. Se os boatos tiverem fundamento, podemos evitar grandes despesas e dificuldades. Será que você pode esclarecer esse ponto por ocasião de sua conversa com o embaixador?
Abusei, certamente, de sua paciência e atenção. Para corrigir um pouco meu erro, permita-me resumir: antes de mais nada, aguardo seus contatos com Recife e com o embaixador. Ficarei contente se houver possibilidade de morar nessa cidade, e mais contente ainda se a porta para o México se mantiver aberta. Mas, antes de partir, precisamos esclarecer a questão dos passaportes. Se os passaportes forem indispensáveis também para o México (um outro país não entra em consideração), teremos que assentir de boa vontade, apesar de tudo. Mas se os passaportes forem supérfluos, estarei livre de um grande fardo; poderia mesmo partir imediatamente para Recife, não sem antes cumprimentá-lo e agradecê-lo no Rio. Ainda temos muito que conversar.
Será que minhas explicações foram claras? Quis ser conciso para não cansá-lo. Você jamais compreenderá essa vida inquieta de refugiado, sem direitos irrestritos, quase fora-da-lei, sempre ameaçado pelo pior. As pequenas chicanas burocráticas transformam-se, para uns, em fantasmas, em pesadelos capazes de nos sufocar e estrangular. Ah, se soubessem pelo que passamos! Este calvário parece não ter fim!
Se não o tivesse conhecido, ou definharia lentamente em São Paulo, ou acabaria em algum campo de concentração, aqui ou lá. Talvez você não saiba, mas suas cartas foram para mim um símbolo da salvação: devo tudo isso a meu modesto interesse pelas letras e pelo povo brasileiros. Naquela ocasião, você me estendeu o dedo e eu agarrei toda a sua mão. Mas esteja certo: ela dará provas de ser a mão de um amigo.
Conte com isso, caro Alvaro Lins. Seu infinitamente grato e devotado
Otto Maria Carpeaux

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