São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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vestindo a camisa

MARIO VITOR SANTOS

Tropas internacionais são formadas como times de pelada. Entra quem estiver a fim

"Estou bem. Te amo", dizia o bilhete que o capitão do Exército brasileiro Harley Alves, capturado por soldados sérvios, enviou à mulher. Usado como escudo humano contra bombas da ONU, o oficial aparentava tédio por estar naquela situação.
Membro das chamadas Forças de Paz das Nações Unidas, militar brasileiro é integrante de uma das partes no conflito. Para molhar as mãos de seus captores; já distribuiu todas as camisetas da seleção brasileira de que dispunha.
Considerados forças de dissuasão, os capacetes azuis se envolveram fundo na guerra. Depois de tanta selvageria por parte dos sérvios contra a população civil em Sarajevo, uma aliança internacional tenta contê-los. Além das camisetas de futebol, eles distribuem muitas outras coisas para os sérvios.
Os sérvios, os "do mal", também se queixam de genocídio contra sua população civil -e acusam as tropas da ONU de participarem da carnificina.
Desde o fim da União Soviética, tropas internacionais sob a égide dos Estados Unidos e com o uniforme da ONU são formadas como times de pelada. Entra quem estiver a fim.
Tempestade no Deserto vira Tempestade no Haiti, que se transfere para Tempestade nos Balcãs. Sejamos todos imperialistas. Em algum tempo, o Exército mundial estará tão azeitado que forças nacionais poderão virar anacrônicas.
Vento que venta lá venta aqui. Abre-se o leque das chamadas questões transnacionais: ecologia, armas químicas e nucleares, drogas, crime organizado, direitos humanos, finanças -até guerras civis- são temas que escapam ao antigo entendimento de soberania.
Os sérvios combatem forças internacionais. Os americanos também. A Milícia de Michigan, relacionada ao atentado de Oklahoma, está convencida de que o governo americano é, na melhor das hipóteses, muito banana.
Numa das orações favoritas dos milicianos, o demônio se chama Nações Unidas, que planejam conquistar os Estados Unidos com o apoio de Washington, usando a Guarda Nacional e a ameaça da violência das gangues de rua para desarmar a população e eliminar a resistência.
Os escovinhas também são desestatizantes. Acham que há governo demais nos EUA. Para eles, a Nova Ordem Mundial, do republicano e texano ex-presidente George Bush, vai se virar contra Washington.
Acreditam que o último objetivo da Nova Ordem seria instalar um governo socialista mundial patrocinado pelas Nações Unidas. Para evitar que isso aconteça, os milicianos vestem uniformes do Exército e explodem edifícios do governo, com creches cheias de criancinhas.
Já têm vários mártires, gente que ofereceu sua vida -com os filhos, às vezes- à causa, depois de peitar forças policiais em cercos como o de Waco, no Texas. São seitas, são milícias, são contra o Estado, são libertário-bárbaro-comunistas de direita.
Entre seus inimigos estão entidades como o Conselho de Relações Exteriores americano (grupo de atuação em questões internacionais de que fazem parte as direções da Xerox e da AT&T) e a Comissão Trilateral (formada por homens de negócios americanos, europeus e japoneses), cujos objetivos últimos também seriam a instalação de um governo único mundial.
Do jeito que crescem os fanatismos ultranacionais, até a Casa Branca ainda vai ter saudade do panorama mundial -quando ele era dividido em dois lados bem definidos pelo muro de Berlim.
E nós vamos ter de reforçar o arsenal de camisetas da seleção.

Ilustração: "Furacão Bob, óleo e gesso sobre lona, Julian Schnabel (1991)

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