São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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O regime da pólis

MÁRIO MIRANDA FILHO

A Constituição de Atenas
Aristóteles Tradução e comentários: Francisco Murari Pires Hucitec, 280 págs. R$ 29,00
``É preciso conhecer as coisas antigas não para mudar as novas mas para usar bem estas últimas"
Montesquieu

E m ``As Origens do Pensamento Grego", J. P. Vernant diz que a razão grega era filha da ``pólis", esta nova forma de organização social inventada pelos antigos gregos. F. Wolf, refletindo sobre as difíceis relações entre a filosofia e a ``pólis", recorda que, se esta paternidade era real, não menos o era o fato que a filosofia teve um destino edipiano: Sócrates, Platão e Aristóteles ``mataram" a democracia ateniense em suas obras, assim como esta matou Sócrates e perseguiu Anaxágoras, Protágoras e Aristóteles.
Ignoramos os motivos que terão levado o historiador Pires a escolher a obra do filósofo ao invés, por exemplo, da obra de um Heródoto ou de um Políbio. Entretanto, leitores brasileiros, já lhe somos gratos, uma vez que boas razões não faltam.
A presente edição em texto bilíngue, grego e português, vem acompanhada de um corpus exuberante de notas, que esclarece o leitor ao preço da fragmentação de sua leitura. Para se ter uma idéia do zelo que Pires dedicou ao texto de Aristóteles, basta dizer que suas notas constituem uma espécie de história paralela à que narra o filósofo, com a vantagem de dispor de uma informação científica cujo rigor lhe permite corrigir eventuais distorções ou imprecisões presentes no texto original. Por exemplo, a propósito de Sólon, adverte-nos que o entendimento ``redutoramente político" de Aristóteles não faz inteira justiça ao poema em que o grande estadista celebra a libertação da escravidão nas terras que os atenienses habitavam (capítulo 12, nota 1, pág. 167); ou quando o filósofo oferece datas díspares para o mesmo evento: a restauração da democracia posterior ao regime dos Trinta.
Aristóteles construiu sua obra dispondo-a em dois eixos: um, diacrônico, que narra a história de Atenas do final do século 7 a.C. até 403 a.C.; outro, sincrônico, onde descreve as instituições e o modo de funcionamento da democracia à época da redação da obra, 325 a.C. Trata-se, portanto, de fonte primária fundamental para a reconstituição da história e das instituições de Atenas e entende-se que o historiador da antiguidade dedique ao historiador Aristóteles o melhor de sua atenção.
Não compreenderíamos tão bem as reformas de Clístenes, ninguém menos que o fundador da democracia ateniense, no final do século 7 a.C., se nos limitássemos a Heródoto, que não faz referência à introdução das novas tritias clistenianas (a população da Ática foi dividida em 10 tribos e cada tribo composta de três tritias: uma proveniente do centro, outra do litoral e outra do interior, de modo que cada tribo tivesse uma composição populacional e territorialmente homogênea -este foi o meio pelo qual ele destruiu o contexto geopolítico tradicional que dava aos Eupátridas um poder equivalente ao dos nossos coronéis). Os antigos atribuíam a Aristóteles uma coleção de 158 constituições que o filósofo teria estudado como um naturalista devotado à classificação dos seres vivos (``A Política", Livro 4, Cap. 4).
Mas se o filósofo fazia obra de historiador -a ponto de um historiador contemporâneo referir-se a ele como ``um aluno medíocre e meticuloso" (sic!) (C. Hignett, ``A History of Athenian Constitution"), o interesse de ``A Constituição de Atenas" não se esgota nesta disciplina. A começar pelo título, literalmente ``A Politeía dos Atenienses". Sabemos que Cícero traduziu o grego ``Politeía" por ``República" e que ``Politeía" é o título da grande obra de Platão: desde o título, a obra traz a marca da filosofia.`` Politeía" deriva de ``pólis", geralmente traduzido por ``cidade-estado".
A ``pólis" compõe-se de diversos elementos e a ``Politeía" é a organização desses elementos, dos quais o mais importante é o governo, pois quem governa tende a imprimir sua marca em toda a cidade. Nossa melhor palavra para isto é ``regime". ``Politeía" é, pois, ``o" regime: assim Platão nomeou seu melhor regime. E a democracia era o regime dos atenienses. Por que então Aristóteles não nomeou sua obra de ``A Democracia dos Atenienses"? Para entender esta preferência temos que recordar a diferença por ele firmada entre ``Politeía" e democracia. ``A Política" nos informa que há três regimes corretos, aos quais correspondem três formas desviadas:
1. Aristocracia, governo dos virtuosos, ao qual corresponde a forma desviada oligarquia.
2. Monarquia, governo de um só (o melhor), ao qual corresponde a forma desviada tirania.
3. ``Politeía", ao qual corresponde a forma desviada democracia.
Qual é então o critério que permite a Aristóteles essa distinção? Trata-se de um critério tão importante que se confunde com o que poderíamos designar -com algum anacronismo- como a legitimidade do Estado: o bem comum. Realmente, a classificação aristotélica dos regimes afirma:
- quando o governante preside tendo em vista seu interesse próprio e não o bem comum, então temos um governo desviado, seja o governante um só -tirania-, poucos -oligarquia- ou muitos -democracia. Poucos, muitos?
Se permanecêssemos neste nível de abstração, a análise aristotélica não se distinguiria das análises políticas posteriores, dotadas de um complexo e sempre abstrato aparato conceitual. Ao contrário, Aristóteles constitui sua ciência política dialeticamente, isto é, explorando as teses dos adversários de modo a ultrapassá-las sem suprimi-las inteiramente. Por exemplo, no capítulo 15 de ``A Constituição de Atenas", ele se refere ao debate travado após a restauração da democracia, referente à dívida contraída pelos oligarcas junto aos lacedemônios em nome de Atenas. Este evento é transportado para ``A Política", onde surge como ponto de partida para uma profunda reflexão sobre a identidade da ``pólis": ``(...) por exemplo, quando se passa de uma oligarquia ou de uma tirania para a democracia, alguns se recusam a cumprir os compromissos contraídos pretextando que não foi a pólis quem se comprometeu mas o tirano" (Livro 3, cap. 3).
Daí a importância do conceito de regime (``Politeía"). Mas só identificamos o regime quando sabemos ao certo quem governa. Assim, na oligarquia não são os poucos (``oligoi") que governam, mas os ricos e na democracia não são os muitos (``demos"), mas os pobres -que em toda sociedade a maioria seja pobre e a minoria rica, é um acidente. Pobres, ricos, eis pois as substâncias que os nomes eufemizam. Um regime oligárquico não pode ser tido como justo ou legítimo, já que governa apenas no interesse dos ricos. Inversamente, um regime democrático, na medida em que espolia os bens dos ricos tampouco o é: ambos são formas regressivas de despotismo, isto é, de privatização do bem comum.
Ora, a pólis é ``por natureza uma pluralidade" (``A Política", Livro 2, 1261), comunidade onde convivem ricos, pobres, virtuosos e outros. Ou seja, todos os cidadãos de Atenas, os ``atenienses" a que se refere o título da presente edição -o que indica que, em se tratando de filosofia, há casos em que uma tradução literal é preferível. Por isso, Aristóteles prefere ``Politeía" a democracia, já que este conceito acarreta uma redução, atual ou potencial, do caráter universal do governo. Designando-a com o título de ``A Constituição dos Atenienses", Aristóteles circunscreve desde logo a questão política tal como a vê a filosofia: o regime legítimo é aquele que menos exclui e que resulta da combinação vantajosa das formas dominantes: oligarquia e democracia. Nesta obra, vêmo-lo fazendo da história uma matéria-prima bruta de onde extrairá os belos pratos com que nos brindará na ``Política"
O texto que o professor Murari Pires apresenta nos transporta para o nascedouro desta forma de governo dita Constituição Mista, forma que foi prolongada por Políbio e que se firmou no Ocidente como tradição constitucionalista, onde o governo se compõe de instituições distintas e equilibradas, operando por consentimento dos governados e sob o império da lei.
No momento em que, com o fim da ``era das tiranias", redescobrimos as virtudes do pluralismo político, nada mais oportuno que a presente edição da obra do filósofo da prudência, que soube, como poucos, extrair de sua experiência as lições para uma vida política civilizada.

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