São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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A Confissão de Peter Brook

INÁ CAMARGO COSTA

Ponto de mudança Peter Brook Tradução de Antonio Mercado e Helena Gaidano Civilização Brasileira, 324 págs. R$ 25,00.

Para que um ponto de vista seja útil, temos que assumi-lo totalmente e defendê-lo até a morte. Mas, ao mesmo tempo, uma voz interior nos sussurra: ``Não o leve muito a sério. Mantenha-o firmemente, abandone-o sem constrangimento".(P.B.)
A ssumindo teatralmente a máscara inglesa de homem pragmático, avesso à teorização, Peter Brook constrói em ``Ponto de mudança" um amplo painel do teatro ocidental no segundo pós-guerra, com claras ambições teóricas, mas na forma de coletânea de fragmentos rememorativos, intervenções em polêmicas, um manifesto, entrevistas, relatos de viagens e reconstituição de pesquisas. É de se notar a sutil evolução do ponto de vista: de início individual, transita por uma vigorosa afirmação coletiva e se interrompe numa estudada relativização recíproca de vozes diversificadas.
Vista no interior dessa montagem, a confissão, à primeira vista lançada para chocar ou inspirar misericórdia, acaba tendo um significado de grande alcance (e vasto assunto), podendo ser lida ao contrário e sem prejuízo do sentido original. Peter Brook ``confessa" que o seu primeiro emprego foi de diretor teatral numa época em que o teatro lhe parecia um insípido e agonizante ancestral do cinema, modalidade para a qual estavam dirigidas as suas ambições de jovem artista.
Sendo óbvia a leitura (normal) em linha reta, vejamos seu sentido contrário, pelo efeito teórico e, no caso do diretor, estritamente prático. Trata-se simplesmente de uma declaração de princípios, tomada de posição nos debates da época e definição do projeto de vida que o livro demonstra e fundamenta. Ela anuncia que o ponto de partida das experiências de que teremos notícia se encontra antes na linguagem cinematográfica que na tradição teatral inglesa, notoriamente conservadora. Isto significa alinhar-se à pouco visível vertente inglesa do teatro épico, ou brechtiano, como se passou a dizer depois, que desde as suas origens mantém estreitas relações com o cinema.
Conforme o espírito que anima o livro, a discussão técnica mais relevante aparece sem alarde em dois textos capitais, logo depois do ``prólogo": ``A conexão de Beck" e ``Feliz Sam Beckett". Aqui Brook avalia os rumos do teatro e do cinema nos anos cinquenta em alguns de seus momentos decisivos: as peças ``A conexão", do americano Jack Gelber, dirigida por Julian Beck, ``Dias felizes", de Beckett e ``Entre quatro paredes", de Sartre, além dos filmes ``O ano passado em Marienbad", e ``Hiroshima, meu amor". Com diferentes resultados, estas obras mostraram que nem cinema nem teatro precisavam mais das limitações de tempo, personagem e enredo -muletas tradicionais, segundo o diretor. Ainda a propósito da peça de Gelber expõe um de seus mais importantes critérios: ``não existe dramaturgia no sentido convencional, nem exposição, desenvolvimento, história, caracterização, construção e sobretudo não há ritmo. Este artifício supremo do teatro -esse deus único ao qual todos servimos, seja em musicais, melodramas ou clássicos-, essa maravilha chamada andamento foi aqui jogada pela janela." Nada que um expressionista, por exemplo, já não tivesse afirmado no início do século, mas Peter Brook estava nadando contra a corrente inglesa.
Dadas estas premissas, compreendem-se a sobriedade e o senso de humor com que este diretor participou de polêmicas fundamentais no período. Nos anos cinquenta, enfrentando por exemplo a ``ortodoxia shakespeariana" e, nos anos sessenta, não se obrigando a escolher dogmaticamente entre Brecht, Stanislavski e Artaud/Grotowski. Ao contrário, considerava que em todos eles (e muitos mais, como por exemplo Gordon Craig) havia o que aprender e o que criticar. Por isso teve cacife para se engajar num projeto como ``Marat/Sade", do brechtiano ortodoxo Peter Weiss (``acusado" entretanto de usar em seu texto recursos artaudianos), criando o espetáculo que consolidou a sua fama mundial (foi quando até o Brasil tomou conhecimento dele). Da mesma forma, estão dadas as razões inclusive políticas do destemor com que, em ``US" (filme e espetáculo teatral), se engajou na campanha mundial contra a guerra do Vietnam, enfrentando até a fúria anticomunista nos USA.
O momento seguinte de sua trajetória configura uma redefinição de rumos a partir do questionamento das limitações do circuito comercial, conduzindo-o a uma pesquisa sediada em Paris que, inspirada na experiência do Teatro das Nações e aproveitando os ventos financeiros da pós-modernidade, já vai providenciando material crítico com que enfrentá-la. Assim, em trabalhos com gente do mundo inteiro -de aldeias na África, Índia e Austrália a camponeses e índios politicamente organizados nos Estados Unidos-, Peter Brook realiza experiências do maior alcance e das quais tivéramos notícias parciais através de filmes como ``O Mahabharata", resumo de um espetáculo teatral de nove horas de duração. Viciado nas convenções do cinema hollywoodiano, o público brasileiro reclamou de duas coisas: o ritmo, excessivamente ``lento", e o ``teatralismo" das cenas e da direção de ator. Ponto para Peter Brook.
Em outros episódios dessa trajetória, encontramos o diretor dirigindo óperas como ``Carmen" e discutindo as convenções desse gênero, incomodado entre outras coisas com o ``star system" e com a permanência do rebaixamento dos músicos (confinados a um buraco nos teatros de ópera).
Fechando o teorema, seu comentário sobre Tchekov, ``um cineasta consumado", demonstra, para quem ainda não percebera que o ancestral do cinema era apenas o velho teatro digestivo inglês, que Peter Brook fez cinema, teatro, ópera, televisão, rádio ou livro sempre com o mesmo tipo de preocupações -a escolha de veículo é uma questão de oportunidade e possibilidades estritamente materiais.

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