São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Nasce um ilusão

MARILENA CHAUÍ

MARILENA CHAUI

A Invenção de Atenas
Nicole Loraux Tradução de Lilian Valle 34 Letras, 448 págs. R$ 19,50

Que há de acontecer quando descobrirmos que a ``Oração Fúnebre" de Péricles, esse monumento da democracia ateniense, tido como fundador para a democracia ocidental moderna, é um discurso militar, patriótico e aristocrático? Que o elogio da democracia que nela se realiza é feito a partir dos valores da aristocracia e não dos critérios, práticas e valores democráticos? Que há uma distância insuperável entre ela e a democracia praticada em Atenas porque desta última não possuímos escritos? E, portanto, que a oração fúnebre é parte da construção de um imaginário político e seu campo é a ideologia? A essas descobertas espantosas nos conduz Nicole Loraux em seu livro, ``A Invenção de Atenas", lembrando, em seu prefácio, os ecos da oração fúnebre ateniense nos discursos de Abraham Lincoln e John Kennedy.
Fomos habituados a considerar certos discursos como expressão clara e distinta para a compreensão da democracia ateniense, e mesmo a tomá-los como discursos fundadores para a democracia ocidental. Dentre eles, a oração fúnebre ateniense -``epitáphios lógos"- tem sido a preferencial ``via transparente de acesso a um modelo transparente da pólis", escreve Nicole Loraux, ao propor o exame minucioso dessa dupla transparência para fazê-la, pouco a pouco, tornar-se opaca quando o trabalho arqueológico, histórico, filológico, literário e filosófico a expõe como ideologia. O ``epitáphios lógos" é ``uma invenção bem ateniense, mas de qual Atenas e invenção do quê?", indaga Loraux.
Livrar-se das armadilhas da interpretação tradicional da oração fúnebre exige deslocar o modo de ler e o campo da leitura para alcançar o que as construções tradicionais silenciaram: que a oração fúnebre é ``intersecção do militar com o político" interagindo no espaço e no tempo cívicos e que o ``epitáphios lógos" fala da guerra. Que é a oração fúnebre? Uma instituição social em que, ao honrar seus guerreiros mortos em combate, Atenas é posta como origem do ``nómos" e causa final da morte dos atenienses; e é um gênero de discurso que não se deixa apanhar pela divisão aristotélica dos três gêneros retóricos, não sendo discurso epidítico, judiciário nem deliberativo. ``Modelo de palavra" ligado à tradição da ``paidéia" cívica e a um modo de pensar a história, é um gênero político (eis uma das descobertas do livro) que procura vencer a tensão entre ``lógos" e ``erga", a palavra e os feitos, um discurso oficial sobre a ``pólis", portanto, com intenção normativa e, desta maneira, um ``lógos" que se apresenta como um ``ergón", um fazer e um feito.
Homilia educativa que ergue uma palavra de honra e glória aos mortos e aos vivos, a oração fúnebre é a fala agonística e aristocrática de uma ``pólis" imperialista que silencia suas lutas internas para oferecer-se una e indivisa perante aqueles que devem aceitar sua hegemonia. Seu objeto é Atenas; seu tema, a hegemonia meritória e merecida de Atenas; seus destinatários, os atenienses vivos e os ``outros"; seus autores, os aristocratas ou, pelo menos, o espírito aristocrático da ``areté" dos ``andría agathói", os homens bons ou valorosos; seu núcleo retórico e de fascinação, a bela morte, ``kalós thanátos", do jovem guerreiro morto em combate; seu fundamento, a autoctonia ateniense, sangue puro e solo do patriotismo e da superioridade de Atenas sobre os ``bárbaros" e sobre todos os helenos.
Nicole Loraux, analisando oito orações fúnebres distantes no tempo -situadas entre o século 4 e o final do século 5-, fazendo o vaivém contínuo entre o discurso e a história, entre a oração fúnebre e outros gêneros de discursos, desvenda o ``epitáphios" como ``palavra sem contrapartida" ou discurso da hegemonia, isto é, da superioridade sobre os iguais (os outros aí surgem como aliados suplicantes ou inimigos subjugados), sem que uma única vez o imperialismo ateniense seja mencionado porque o tom agonístico do discurso coloca a guerra como rivalidade entre os iguais e, com isto, mais engrandece Atenas por havê-los vencido. Hegemonia e ``ágon" conduzem a oração fúnebre a fazer da guerra o modelo da política. Não há, mostra Loraux, ``biós polítikos": o cidadão, mero ser biológico sem valor, existe apenas como hoplita, soldado que por uma decisão lúcida da vontade coloca a felicidade na liberdade, a liberdade na valentia e a valentia na morte gloriosa na qual a liberdade de Atenas é defendida. E o ``epitáphios" sequer fala dos feitos individuais, mas dos atenienses. Patriótica e bélica, a oração fúnebre afirma que os vivos só existem por sua devoção à cidade e os mortos, só pela memória de Atenas.
Mesmo quando a história produz mudanças sociais significativas e altera a escala de valores, modificando as relações entre o público e o privado, o ``epitáphios" não se altera porque organiza a temporalidade de maneira a conjurar as inovações do presente, articulando o tempo da ``pólis" (sua grandeza perene), o dos cidadãos (seu dinamismo presente) e o dos mortos (sua exemplaridade imortal). Produz, assim, graças a uma série de procedimentos retóricos codificados, do afastamento de ``chronos" (o tempo como sucessão e mudança) e ênfase no ``aión" (permanência de um princípio que se renova sem cessar), ``a história ateniense de Atenas" como movimento imóvel, gesta, encenação repetitiva e exemplar de uma única e sempre a mesma ``areté": os feitos gloriosos da guerra e as ``derrotas vitoriosas" de Atenas intemporal.
Partindo do mito da autoctonia, que afirma a pureza de nascimento e sangue dos atenienses bem como sua coragem inata e sua excelência, essa história ideológica constrói a essência ateniense como modelo e humanidade e divide o mundo em dois campos -a ``Díke" ateniense e a ``Hìbris" dos ``outros"- que permite figurar a guerra ofensiva como liberação dos oprimidos e a guerra defensiva como castigo aos invasores ímpios. É essa construção militar de Atenas como idealidade intemporal que torna a oração fúnebre uma palavra eficaz, mesmo e sobretudo quando a realidade contradiz o discurso, exercendo sobre seus ouvintes fascínio e êxtase porque lhes dá o sentimento da imortalidade, da nobreza e da glória pois sabem que Atenas excede os vivos e os mortos.
Emoldurado pelos capítulos 2 e 3 (conteúdo e destinatários dos ``epitaphiói") e pelos capítulos 5 e 6 (forma e ``topói" da oração fúnebre; o ``epitáphios" como ideologia, a partir da clarificação do que seja a ideologia numa sociedade antiga), encontra-se o capítulo central do livro cujo título é por si mesmo significativo: um trecho de Tucídides no qual se lê que ``a isto dão o nome de democracia".
A oração fúnebre é um enigma e propõe um problema. De fato, lida como um discurso que teria em seu centro o elogio da democracia, nela reina o silêncio sobre o ``krátos" do ``demos" (o poder do ``demos"). Não só. Nela, a figura de Atenas é mais importante que a da democracia; nela não são mencionados os critérios mais importantes da democracia (isonomia, isegoria, mistoforia, sorteios etc.) e, em contrapartida, a ``areté" detém o lugar mais importante, a democracia aparecendo em alguns dos ``epitaphiói" aureolada de uma origem quase mítica e intemporal. Mais do que isto. Quando emprega o vocabulário democrático (povo, lei, igualdade, liberdade), a oração fúnebre o deforma, dando-lhe um sentido aristocrático. Como um discurso, no qual se acredita reconhecer a prática democrática, pode ter sido tecido com a linguagem e as representações aristocráticas, indaga Nicole Loraux?
E responde, após minuciosa análise dos ``epitaphiói" e das razões pelas quais os democratas atenienses, afinal, não escreveram uma teoria da democracia: a oração fúnebre é uma ideologia aristocrática que elogia a democracia. Ideologia, porque omite os critérios democráticos da democracia e porque faz das tensões e divisões que regem a cidade e suas práticas não o coração da vida democrática, mas algo pejorativo e perigoso, substituindo-as pela idéia da bela totalidade, da ``pólis" una, indivisa, harmoniosa e sempre concorde consigo mesma. Aristocrática, porque, na falta de uma teoria democrática da democracia, preenche a lacuna com representações e valores da aristocracia. E, no entanto, é elogio da democracia, ainda que sob a perspectiva agonística aristocrática que opõe democracia e tirania, democracia e oligarquia, a Grécia aos Bárbaros e Atenas a Esparta.

MARILENA CHAUI é professora de história da filosofia moderna e filosofia política no departamento de filosofia da USP

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