São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Quem precisa de autor?

LUIZ RENATO MARTINS

O Autor no Cinema - A Política dos Autores: França, Brasil anos 50 e 60
Jean-Claude Bernardet Brasiliense/Edusp, 205 págs. R$ 15,30

A tualmente, falar de cinema implica referir-se, de um modo ou de outro, à idéia de autor. Ela é moeda corrente na mídia, na locução das TVs, nas salas especiais, etc. Assim, a importância do cinema de autor e a atribuição do poder de autoria ao diretor comporta um valor imediato que dispensa apresentação. O livro parte, pois, de uma evidência, porém, para roubar-lhe a naturalidade, expondo-a a um processo investigativo.
Bernardet estuda a difusão da idéia de autor desde os anos 50, a partir do grupo de jovens críticos reunidos nos ``Cahiers du Cinéma", e, que, depois originaria no início dos 60 a Nouvelle Vague. A ``política dos autores" -a doutrina deste grupo- tem como marco inicial a noção de ``caméra-stylo" (literalmente câmera-caneta), concebida por Astruc, em artigo para ``L'Écran Français", de 30/3/48. (O primeiro número dos ``Cahiers" é de 1/4/51).
A intenção de Astruc era dotar o cinema de um estatuto abstrato e intelectual símile ao da escrita. A meta era superar a marca de espetáculo de feira, a origem semicircense do cinema, a fim de torná-lo obra de pensamento e enobrecê-lo como arte; ou, segundo Bernardet, em termos da época, prepará-lo para obras semelhantes ``pela complexidade e significação aos romances de um Faulkner ou de um Malraux, aos ensaios de um Sartre ou de um Camus".
Mais dois elementos de doutrina são difundidos pelo grupo: a apologia da expressão pessoal do diretor e a referência ao cinema norte-americano. O cinema francês da época era combatido pelos ``Cahiers" enquanto impregnado por padrões literários, teatrais etc.
Em suma, estetização e cinefilia, coloquialidade e personalismo objetivando formar o público e forjar novos padrões de consumo, deram os vetores deste projeto de modernização setorial -cujos laços com o pop, evidentes na adesão a padrões narrativos da cultura de massa, como o filme B e os quadrinhos, decorriam, penso, da referência à idéia de consumo, chave para ambos.
No método crítico dos ``Cahiers", próximo ao da ``psicocrítica" de Mauron, e haurido, mediante Bazin, do personalismo ontológico cristão de Mounier, ``moral" será um termo-chave. Para além da matriz coletiva e industrial do filme, e da diversidade dos trabalhos de um mesmo diretor, importa decantar as redundâncias e ``fazer emergir uma metafísica latente (...) considerando a obra do autor cinematográfico da mesma maneira que a de tal pintor ou poeta esotérico". Todo autor traz, pois, uma ``matriz", a ser buscada pelo cineasta e pelo crítico, e que condiciona o curso dramático dos filmes, unificando-os numa obra.
Bernardet, em algumas das páginas mais vigorosas do livro, expõe o misticismo desta visão. E registra oposições como a de Sadoul: ``O Culto da Personalidade - Autores de Filmes e Filmes de Autores" (``Les Lettres Françaises", 17/7/58). Drouzy, que concebe o filme como ``fruto de um quadro de produção que envolve tanto o diretor quanto o produtor", conservando ``as marcas dessa relação de produção", também é destacado por Bernardet.
O crítico norte-americano John Hess julgou a Nouvelle Vague ``um movimento conservador que tinha como função afastar a realidade social do cinema". Nessa linha de raciocínio (depois de salientar: ``o método que venceu -na época e com profundas repercussões até hoje- é a política dos autores"), Bernardet afirma que a marca ``romântica" fica patente na idéia de uma essência do cinema, manifesta nas obras dos grandes autores.
Além do primeiro capítulo, ``Domínio Francês - Anos 50", em que detalha e discute tal ordem de idéias, o livro traz mais dois capítulos, cuja construção -a do segundo mais documental, a do terceiro mais concisa, sem ser vaga- subsidia e desdobra a veia crítica exposta pelo primeiro. Assim, o capítulo 2 compila os efeitos das idéias dos ``Cahiers" na crítica cinematográfica do Brasil, nos anos 50 e 60. Destacam-se neste elenco Paulo Emílio e Glauber, pelo poder reflexivo; o primeiro, pela crítica aos ``jovens pedantes e direitizantes dos Cahiers"; e o segundo, pela reelaboração da idéia de autor, fundido com a história coletiva, como fator político de libertação nacional.
Nos anos 70, como mostra o capítulo 3, ``O declínio do autor", através de um sumário do debate francês gerado pelas teorias críticas do sujeito, a idéia de autor saiu de cena, alvejada pelos movimentos pós-68 e pelas críticas estruturalistas que vinham, no caso, da revista marxista ``Cinéthique" e também do novo grupo dos ``Cahiers". Com efeito, quem consulta um bom e abrangente compêndio de teorias do cinema, como ``O Discurso Cinematográfico - A Opacidade e a Transparência", de Ismail Xavier (Paz e Terra, 1977), nota que passa ao largo da idéia de autor -àquela altura em franco descrédito. E não o faz sem razão, dada a precariedade conceitual da causa autoral, apontada por Bernardet. Como explicar agora sua restauração simbólica no imaginário geral?
O fecho sutil do livro, após afirmar que ``uma nova subjetividade surge (que não é aqui o nosso assunto) (...) e parece ceder o passo a uma recuperação de idéias da época gloriosa da política (dos autores)", aponta, a partir de Barthes, para o autor como ``fantasia do espectador". Considerando-se que o livro inicia com a definição paradigmática de autor do ``Nouveau Larousse Illustré" (``DEUS, aquele que é a causa primeira"), a conclusão de Bernardet situa o autor como construção imaginária, como inversão simétrica abstrata do espectador abstrato.

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