São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Inconsciência de classe

EMIR SADER
O MEDO DA QUEDA - ASCENSÃO E CRISE DA CLASSE MÉDIA

Bárbara Ehrenreich Tradução: Lucy Petroucic, Ademar da Silva e Maria das Graças G. V. da Silva Scritta, 353 páginas R$ 26,00
A história dos EUA frustrou as expectativas tanto de Marx, quanto de Tocqueville. Em sua história do movimento operário norte-americano, Mike Davis -autor da obra mais relevante sobre Los Angeles como paradigma da pós-modernidade, ``Cidade do Quartzo" (Scritta) -mostra (``Prisoners of the American Dream" , Ed. Verso, Londres, 1986) como as condições concretas colocaram obstáculos, em lugar de facilitar o surgimento da classe operária desse país como sujeito político autônomo.
Entre as causas desse bloqueio, Davis cita a natureza de sociedade de fronteiras livres, que permitiu ao trabalhador, no período de formação do proletariado norte-americano, se aventurar a ser pequeno proprietário, valendo-se da mobilidade individual que essa situação propiciava. A esse fator se somavam as divisões impostas pela chegada dos milhões de imigrantes pobres da Irlanda e da Alemanha e a questão racial. Tudo isso possibilitou o fortalecimento da imagem do ``self made man" como modelo do homem norte-americano. O que, por si só, significa dizer que o homem de classe média foi elevado à categoria de padrão nacional, representativo do ``ser norte-americano".
``O Medo da Queda", da ensaísta, feminista e marxista Barbara Ehrenreich -cujo título original, ``The Fear of Falling" representa também uma contrapartida de um dos maiores sucessos do auge feminista dos anos 60, ``The Fear of Flying", de Erica Jong- se propõe a ser uma história da trajetória da classe média assalariada nos EUA dos anos 60 aos 80. Uma história que, segundo ela, começa sob a égide da generosidade e do otimismo e termina no cinismo e no egoísmo, correlatos às transformações ideológicas operadas na sociedade norte-americana entre as duas décadas -do liberalismo democrata ao neoliberalismo republicano. Mais do que a radiografia de uma classe, trata-se da própria alma norte-americana, que representa a classe média como sua classe universal, uma classe que é sempre mostrada como representativa de todos. ``Todas as personalidades que dominam os programas de entrevista são, para o espectador comum, membros desse grupo relativamente privilegiado -bem-alimentados, bem-educados e empregados em ocupações tranquilas, como jornalismo ou ensino universitário". As maiores obras do pensamento social dos EUA assumem este postulado, quando falam do caráter norte-americano.
Daí o sucesso -mais além das inegáveis qualidades literárias do autor- da série de ``coelhos" de John Updike. E daí também -segundo Doctorow- a dificuldade de romances protagonizados por pessoas pobres ou da classe trabalhadora obterem sucesso. A essas obras se atribui uma intenção política, buscando desqualificá-las como arte. As classes baixas, assim, sumiram da cultura comum nos anos 50, só sendo ``redescobertas" nos anos 60. Considerando que, para a classe média, o grau de autoconsciência que ela consegue obter passa pelo espelho dos de baixo e dos de cima, esse esconde-esconde é fator preponderante na sua própria evolução ideológica.
Na explicação convencional, a desilusão da classe média teria se dado, primeiro, com a subida dos índices criminais protagonizados pelos negros pobres e pelos despossuídos; em seguida, com os operários supostamente revelando seu caráter conservador; finalmente, com a regressão econômica dos anos 70. O caminho desembocou na classe média se refugiando em seus próprios interesses materiais, em suas carreiras e suas vidas privadas, convencida de que ``os despossuídos de qualquer modo não eram dignos de ajuda".
Para Ehrenreich, a mudança chave na percepção de si mesma da classe média se deu na passagem da idéia de que ela era a América até uma consciência crescente de que ela era somente uma classe entre as outras, isolada e privilegiada. A descoberta da pobreza, no começo da década de 60 -a partir do fenômeno catalogado como ``delinquência juvenil"-, foi a de um setor considerado então como residual, produto de uma patologia social localizada, absorvível por programas como os dos democratas Kennedy e Johnson.
Mas os anos 60 trouxeram também a irrupção do movimento estudantil, que apontava para o fracasso moral da classe média. Entre a acusação de responsabilidade pelas mazelas da sociedade americana feita pelos estudantes e o diagnóstico de que o desajuste daqueles jovens era responsabilidade de uma educação demasiado permissiva, tudo apontava para a classe média como ré. A abundância do pós-guerra tinha feito emergir os adolescentes -os ``teenagers"- como novo componente do mercado e sua cultura -centrada no rock e nas drogas chacoalhava a atordoada consciência de si da classe média. A luta pelos direitos civis fazia aparecer um sujeito que não se resignava à filantropia da classe média e buscava um espaço próprio de ação.
Naquele momento foi cunhado o termo ``maioria silenciosa", por Richard Nixon, para interpelar esse ``americano médio", na busca de compensação contra as ``minorias" mobilizadas e radicalizadas -os negros, os estudantes, as mulheres. Uma vez rompido o mito de que era o centro da imensa maioria do país, quando se viu sobrepujada pelas reivindicações radicalizadas dos direitos civis, ``a classe média descobriu uma imagem negativa, hediondamente desagradável de si mesma: uma elite isolada, pretenciosamente liberal e menosprezada pelos autênticos trabalhadores americanos".
Foi o momento em que o espectro ideológico passou a ser redefinido pela emergência do neoliberalismo -de uma ``nova direita". Seus inimigos também teriam que ser redefinidos: eles passaram a ser os ``improdutivos", isto é, os pobres, os indivíduos assistidos pela previdência social e os estudantes de esquerda e seus professores universitários. Em suma, os que vivem às custas do salário desemprego ou, de alguma forma, dos recursos do Estado. Os programas antipobreza, elaborados nos anos 60, eram vistos como ``um enorme derramamento de generosidade mal direcionada e permissiva". Uma pobreza que, tal como os argumentos denunciados por Hirschman, em seu ``A Retórica da Intransigência" (Cia. das Letras) teria sido causada pelos próprios esforços para curá-la. Ou, segundo um relatório do governo Reagan: as políticas liberais tinham ``desgastado o tecido da vida familiar americana, aumentando o crime, os nascimentos ilegítimos, o uso das drogas, a gravidez na adolescência, o divórcio, as doenças sexualmente transmissíveis e a pobreza". O efeito imediato dos cortes drásticos no vale-refeição, na assistência habitacional, nos programas de nutrição para bebês e mulheres grávidas foi transferir aproximadamente onze milhões de norte-americanos para as classes pobres.
Essas mudanças se refletiram diretamente nas condições de consumo, especialmente depois que o governo Reagan conseguiu quebrar a resistência do movimento sindical, com a derrota da greve dos controladores de tráfego aéreo, em 1981. O caminho estava livre para que o ``yuppismo" desse o tom dos novos estilos de consumo: os ricos, cerca de 5% dos norte-americanos, que detinham acima de 50% da riqueza da nação, se encarregavam de dar vazão ao hiperconsumismo que voltou à moda. A cisão radical da esfera do consumo -fenômeno até ali típico dos países periféricos do capitalismo- se estendeu aos EUA: o mercado de massa desapareceu e em seu lugar surgiram dois mercados -o da classe alta e o da classe baixa.
Os ricos voltavam a deixar de se esconder, a se exibir. A riqueza já não envergonhava ninguém -os impostos para eles haviam baixado e, além disso, a pobreza era culpa dos próprios pobres. Ser rico era demonstrar capacidade, competência, poder, sucesso. A classe média tinha feito sua escolha -estar do lado dos vitoriosos. Afastando-se dos espaços e dos serviços públicos, deteriorados pelas políticas neoliberais de Reagan e de Bush, ela também se distanciava da pressão por maiores gastos públicos para o benefício da comunidade, deixando essa batalha unicamente nas mãos das classes trabalhadoras. Ao contrário, passou a somar sua voz contra esses gastos, caracterizados como inúteis e injustos socialmente, além de geradores de mais impostos.
Ao traçar assim a trajetória da classe média americana, Ehrenreich esboçou um macrocosmo da evolução dos EUA, desde quando as diferenças sociais tendiam à diminuição até o momento em que, pela primeira vez na história do país, os filhos da classe média passaram a viver pior que seus pais. Desfeito o sonho americano, começou a caça às bruxas, aos responsáveis -sempre endógenos à alma americana, ao espírito do ``self made man"- pela decadência da sociedade mais poderosa do mundo. Uma vez mais, incapaz de se representar, a classe média busca os super-homens que a resgatem dos diabos que ela mesma criou.

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