São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Courtney Love fala da morte de Cobain

AMY RAPHAEL
DO "LOS ANGELES TIMES"

Pouco mais de um ano depois do lançamento de ``Live Through This" e do suicídio de Kurt Cobain, do Nirvana, e oito meses depois de começar uma turnê mundial, a Hole está se aproximando da exaustão física e emocional.
Em dado momento, na madrugada, Courtney Love, ex-mulher de Kurt e líder da banda, começa a chorar e se mostra confusa em relação ao ``timing" da morte de Kurt.
Courtney, que poderia facilmente cair no papel de viúva trágica mais frequentemente do que o faz, passa o dia inteiro representando um papel que desmente o estado emocional no qual, mais tarde, revela estar.
Courtney deveria estar falando sobre a Hole, a turnê, o Lollapalooza e o próximo álbum. Em vez disso, ela quer falar de Trent Reznor (Nine Inch Nails), Julian Cope, Michael Stipe (R.E.M.), Aids, automutilação e Kurt.
Justamente quando Courtney começa a falar sobre o próximo álbum o telefone toca. Seja quem for que está do outro lado voou dos EUA para a Suíça só para vê-la. Depois de um breve papo ela desliga o telefone e sorri um sorriso malicioso: ``Não posso te contar quem era, de jeito nenhum", diz.
Ela se nega a revelar quem era, curtindo o suspense. A única coisa que diz é: ``Quando você está numa banda, você consegue todos os caras quentes! Todo mundo fala coisas tipo `Porque ela anda trepando, o marido dela acaba de morrer'. Foda-se!".
Casualmente, no meio da conversa, Courtney menciona nomes como Keanu, Stephen Dorff e Brad Pitt. A impressão que fica é que ela penetrou sem querer em Hollywood, de uma maneira que sequer teria cogitado em fazer um ano atrás.
Mas, de certo modo, faz sentido que ela flerte com o ``glamour trash" de Hollywood: a Hole pode ser uma banda de rock independente, mas sua cantora não tem nada de "independente.
É claro que Courtney é feita de contradições, misturando o refinado com o grosseiro.
Courtney finalmente começa a falar sobre o próximo álbum: ``Sei exatamente o som que quero: eu já o construí em minha cabeça, como um círculo."
``A parte de cima quero que seja quente, Crazy Horse, Harvest. A faixa do meio é realmente floral, como aquela coisa 4AD (gravadora inglesa), supertexturizado. A parte de baixo quero que seja a mais contorcida e fodida, um encontro entre Black Sabbath e sampling. E estou pensando em pedir a Moby que faça a produção.
Courtney passou o dia todo andando por aí com folhas amassadas de letras de canções na bolsa. Courtney vem escrevendo essas letras de um mês para cá e diz que algumas delas são ``uma merda".
A leitura das letras traz lembranças, e quando Courtney termina, ela começa a falar de Kurt.
``Tenho um monte de vídeos caseiros. Quando os assisto, a essência está ali. Os sapatos dele estão em casa. Ele usou os mesmos durante sete anos e nunca trocava as meias -aquele chulé não vai embora nunca... Não sei o que fazer com suas roupas de baixo..."
``River Phoenix queria conhecer Kurt e veio de avião para onde estávamos. Kurt e eu resolvemos ir transar e Kurt era tão mau que pendurou uma placa na porta dizendo `Nada de estrelas de cinema ou tietes, por favor, estamos trepando'."
À medida que a madrugada avança, Courtney chora e parece mal acreditar no que aconteceu: ``A última coisa que ele comprou foram flores. Ele deixou lírios na cama para mim e elas estavam secando... e suas calças remendadas também sumiram."
``Ele sabia que a mulher dele escolhe os piores homens do mundo, aqueles que a tratam como merda total. Kurt me tratava como uma dama."
``Existe uma coisa sobre o feminismo que eu quero dizer: adoro ser tratada como mulher e adoro o que acontece, fisiologicamente, entre homem e mulher."
``Desde que Kurt morreu eu parei de menstruar e meu ginecologista disse que estou com excesso de testosterona. Ele queria que eu tomasse pílulas, mas estrogênio é veneno. É horrível."
``Resolvi não tomar, porque se eu estivesse tomando estrogênio eu seria uma pessoa diferente. Gosto da quantidade de testosterona que tenho porque é ela que me dá os `culhões' que preciso para subir no palco todas as noites."
"O que eu entendo sobre o suicídio, até agora, é que você ou eu nos sentimos bem dentro de nossos corpos. Eu preciso de meus Valiums e Prozacs e tudo o mais para conseguir viver, mas de modo geral me sinto bem."
``Mas Kurt não se sentia à vontade dentro de seu corpo. Ele tinha problemas digestivos e dores de estômago. Não era uma desculpa qualquer para conseguir drogas, porque ele poderia ter fajutado qualquer coisa."
``Ele planejou o suicídio durante anos. Perto do final, ele foi ficando estranho e louco e queria afastar todo mundo e sentia seu corpo como uma prisão."
``Tenho um livro médico chamado `Suicidologia' e esse médico que o escreveu encontrou umas 60 ou 70 cartas de suicidas no escritório de um médico legista de Los Angeles, e todos eram semelhantes à de Kurt."
``Eram completamente irracionais, muitas dirigidas a um amigo imaginário de infância ou a eles mesmos. Não dá para dizer que ele estivesse num estado de espírito racional quando se matou."
``Kurt erotizou seu suicídio, e isso é como se apaixonar. Parecia que ele já tinha tramado tudo: aquelas fotos na França com uma arma, por exemplo. E por que ele esperou até chegar em Roma para tomar aqueles comprimidos? Aquela noite em Roma ele escreveu um bilhete suicida, mas era uma negação tão grande."
``Por que ele esperou até eu estar ali? Por que queria uma platéia? Por que queria ser salvo? Todo mundo dizia coisas tipo `Como um astro do rock pode estar sozinho?' Porque fugia e se escondia no mato toda vez que alguém vinha à nossa casa."
Courtney diz que é obrigada a conviver com as imagens de seus fantasmas, mas também com o fato de que seu marido morto é propriedade pública.
Ela diz que a pessoa que roubou o bilhete do suicídio e o imprimiu em camisetas está sendo processada -``ele já está morto"- e conta como uma pessoa tirou 20 fotos com Polaroid do rosto devastado de Kurt, no necrotério, com a intenção de imprimi-las em várias camisetas.
Ela chora muito quando fala nessas fotos, depois tenta encontrar alguma coisa positiva para comentar.
``Vou fazer uma cerimônia pública em Seattle, no Cemitério Calberry, quando a lápide voltar. Vou colocar os restos mortais dele e alguns de seus objetos favoritos lá e enterrá-los bem fundo."
``Nenhum cemitério queria aceitá-lo porque teria problemas com as peregrinações de fãs até lá e tudo mais. Mas eu já estou de saco cheio das peregrinações até minha casa. Tenho um guarda armado em frente da casa durante 24 horas por dia."
``Kurt ficaria uma fera! Ele diria: `Pegue uma lápide qualquer e escreva meu nome em cima a caneta'. "
``A revista Rolling Stone tinha uma nova categoria de astros do rock que têm maior probabilidade de morrer no próximo ano. O número um era eu, é claro. O número dois era Eddie (Veder, do Pearl Jam), o número três Trent."
``A piada era que todos nós sobreviveríamos a uma guerra nuclear."

Tradução de Clara Allain

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