São Paulo, quarta-feira, 7 de junho de 1995
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Lula vive desconforto evasivo dos tucanos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O fim da greve dos petroleiros foi recebido com grande e generalizado alívio. Mas deve-se admitir que, enquanto durou, a seus evidentes incômodos e prejuízos somou-se um certo fascínio com o que ocorria.
Os grevistas começaram a assemelhar-se, depois de um tempo, àqueles almirantes que não abandonam o barco que naufraga. Tudo os levava a desistir; era evidente que o governo não cederia um milímetro; o movimento era claramente impopular; mas a greve continuava; já era mais uma questão de amor-próprio do que de interesse econômico.
O maior motivo de fascínio foi, entretanto, a atitude do governo. A inflexibilidade de FHC ocasionou comparações elogiosas com Margaret Thatcher. Ainda que o rótulo de "neoliberal não soe aos ouvidos do governo como elogio, o de "thatcheriano parece ter perdido suas conotações pejorativas.
Estivéssemos no governo Collor, a intransigência com os petroleiros seria vista como mais um sintoma da personalidade paranóide e arrogante do presidente. O passado de FHC permitiu que o espetáculo transcorresse sem maiores críticas.
A greve foi uma bênção para o governo. Nada poderia dar mais impulso às reformas do que a impopularidade da mobilização. Mais do que isso, tratava-se de demonstrar à sociedade que o governo é decidido, firme, sabe o que quer etc. Coisa necessária para a imagem dos tucanos.
Ainda mais necessária porque o governo vinha cedendo em muita coisa: da anistia de Lucena às reivindicações da bancada ruralista. Mas é claro que uma greve parlamentar é fato mais delicado que uma greve em serviços essenciais.
Fica-se, é claro, com a sensação de dois pesos e duas medidas, aliás ressaltada por Lula e por outros críticos do governo. Cede-se aos interesses de agricultores endividados, mas aos petroleiros, nunca.
Nessa dualidade de critérios e de atitudes, o conteúdo político das alianças de FHC não poderia ficar mais claro. Mas a imagem de "firmeza e "decisão parece ser mais importante do que a consideração a respeito de sobre quem, e como, essa firmeza se exerce.
Pois a opinião pública teria certamente aplaudido uma atitude inflexível no caso Lucena, por exemplo. Quer-se sempre ver o espetáculo da autoridade sendo exercida; por sorte, com a greve, o governo pôde exercê-la sem desgostar seus aliados. Foi isto o que deu ao episódio seu caráter inédito, "histórico.
Costuma-se dizer que as ações de um governo atendem sempre aos interesses de grupos específicos, apresentando-os sob a forma de interesses gerais da sociedade. Isto não tem sido muito fácil de fazer ultimamente, e não só no Brasil: a ação dos lobbies e grupos de pressão tornou-se pública e aberta nos Estados contemporâneos, e sempre se sabe com clareza quando o governo está cedendo a interesses específicos, sacrificando seu próprio projeto mais amplo, negociando apoios em troca de vantagens e privilégios.
Raramente o governo pode mostrar-se como defensor dos interesses gerais da sociedade. Uma ameaça de colapso na distribuição de gás e combustíveis é, assim, uma ocasião preciosa, já que todo mundo é atingido pela greve.
Mas por isso mesmo é que a greve foi "política, como se diz, dos dois lados. Descumprir o acordo com os petroleiros, e apostar nas simpatias da opinião pública à medida que se configurava o desabastecimento, é atitude tão "política e "radical quanto fazer greve pela manutenção do monopólio.
O episódio conferiu um prazer extra ao governo: foi o de ver Lula e Vicentinho numa situação de insegurança e vacilação dificílima de sustentar. Foram pressionados a ficar favor da greve, sabendo que só perderiam com ela. Um desconforto digno do mais sutil e evasivo dos tucanos.
A argumentação em favor do monopólio e das estatais não convence mais ninguém. Nem mesmo o PT sabe mais por que defende esses pontos. A batalha não só está perdida, como não é essencial do ponto de vista de uma estratégia de esquerda a médio prazo. E paralisa completamente a oposição.
Desconfio que, afora os óbvios interesses corporativos, já não está em jogo nenhuma questão doutrinária na defesa das estatais. Tudo parece resumir-se a um ponto de honra, a um problema de amor-próprio.
Fica chato mudar de posição. Fica incômodo defender a privatização ao lado de ACM e do PPR. É ruim admitir o erro.
Só que, mais do que nunca, Lula e partes do PT vão pagando um preço alto demais pela teimosia doutrinária. Ser ao mesmo tempo irredutível nas convicções e tucano nos pronunciamentos já não é coerência, é gagazice.
O pior é que desse modo a oposição ao governo FHC perde em credibilidade quando se trata de apontar falcatruas e erros técnicos nas privatizações e nas reformas.
Tudo surge como simples pretexto para uma reafirmação de princípios estatistas. Os partidos de esquerda deixam de tratar do que interessa para confundir-se com a caricatura do que eram há 40 anos.
Pontos de honra absolutamente dispensáveis quando se pensa em progresso social, aprofundamento da democracia, defesa dos oprimidos e dos discriminados, como Petrobrás e Cuba, imobilizam o PT. E quando Lula critica o acordo com a bancada ruralista, isto surge no meio de complicadas defesas e desditos: trata-se mais de negar que é contra a greve do que qualquer coisa.
Depois se reclama quando ACM posa de moderno.

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