São Paulo, quinta-feira, 8 de junho de 1995
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Os tempos que são novos

JANIO DE FREITAS

A conclusão é simples e deprimente: o governo e os grupos econômicos, aliados, podem mudar absolutamente qualquer artigo da Constituição, dependendo só de que façam, para montar a maioria de votos, distribuição bem-orientada de dinheiro, cargos e favorecimentos financeiros.
A política brasileira sempre teve, como um dos seus principais componentes, a falta de escrúpulos, com uns poucos intervalos no período encerrado pela Revolução de 30. Mas este traço não se fazia acompanhar da falta de vergonha pelas baixezas. O cuidado para não ir ao exagero que suscitasse escândalo e a dissimulação habilidosa eram normas que revestiam o propósito e o ato indignos. A pudica UDN, por exemplo, cansou de fazer acordos torpes com o governo de Juscelino, sobretudo em torno da orgia que foi a construção de Brasília, e morreu pelas mãos do regime militar com a imagem de uma virgem estuprada.
Mas o presidente-sociólogo tem motivos incontestáveis, provenientes tanto de testemunho como de experiência própria, para dizer que ``os tempos mudaram, não estamos mais nos anos 50". A falta de escrúpulos não teme mais o exagero: é ilimitada. Nem se ocupa com aparências: é escancarada. Os tempos são outros. Mas não só eles. Também os políticos são outros.
O governo não tinha maioria de parlamentares favoráveis aos seus projetos de alteração constitucional, a não ser para aqueles sem maior significação. Suas dificuldades são atestadas pela maneira como foi buscar maioria. Já a sessão da Câmara começava anteontem, para votar o projeto das telecomunicações, e o presidente da República recebia ainda representantes de grupos parlamentares para negociar os seus votos, adquiridos com favorecimentos financeiros à custa do Banco do Brasil.
Enquanto isso, o vice Marco Maciel e o ministro Sérgio Motta ocupavam-se de adquirir os votos do PTB, do PP e do PL. Eram revalorizações e chantagens de última hora, traduzíveis por aumento dos preços. A dinheirama empresarial já tratara de abrir outras vias, junto aos que preferem moeda viva a cargos e privilégios financeiros (na atividade empresarial, ficará para pesquisas futuras a ação de um suposto Instituto de Desenvolvimento das Telecomunicações, fachada pomposa para um ``lobby", tão endinheirado quanto ordinário).
Na votação de ontem, para definir o destino do petróleo, não foi diferente. Já em horário da sessão, parlamentares do bloco ruralista dirigiam-se ao Ministério da Fazenda para ampliar seus ganhos, ou seu preço, no negócio que já lhes rendera, pelas votações anteriores, R$ 1 bilhão. Enquanto isso, o presidente da República, que noutro dia cobrava o respeito à dignidade do seu cargo, negociava com outros, sempre completado pelos impolutos Marco Maciel e Sérgio Motta.
A Constituição, portanto, não está sendo mudada porque à maioria dos parlamentares pareça necessário mudá-la. Mas porque dinheiro grosso, cargos bons e favorecimentos indecentes são usados para comprar as alterações, com a mesma e ilimitada falta de escrúpulos de uma parte e de outra. É o legado, que o atual governo adotou, da sociedade feita em 88 entre Sarney e o Centrão: o ``é dando que se recebe" torna-se, nestes tempos mudados, a criação mais institucionalizada do regime dito democratizado.
Que bom seria para o país se encostasse no Congresso uma frota de camburões e levasse, para seu merecido destino, duas a três centenas de políticos, a máfia lobista e um lote substancioso de mercenários que passam por ser jornalistas. O destino não deveria excluir os trabalhos forçados.

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