São Paulo, sexta-feira, 9 de junho de 1995
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Molhos variados são o segredo dos cozidos

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Rio de Janeiro da minha infância era o paraíso de uma menina em férias, na casa da avó. A hospitalidade de uma tia, porém, com seu hall de mármore escorregadio e seu cachorro bravíssimo com comida de ``luxo" -chuchus cortados ao meio e servidos frios, recheados com salada de nozes e passas- empalidecia um pouco o brilho do Rio.
Eu morria de medo do cachorro, um medo profundo, atávico, primordial, o que não me impedia de admirar o pedação de músculo cozido que ele ganhava no almoço e no jantar. Era cozido até que as fibras se soltassem quase sozinhas, macio, quente, sem sal.
Um dia, tive um momento de fraqueza e confessei à tia chique que estava com desejo da comida do cachorro.
Ela estatelou os olhos, não acreditou no que ouviu, dona-de-casa perfeita que era. Foi um golpe de morte nas suas pretensões culinárias. Contou para todo mundo, entre chorosa e irônica, e me botou sentada na copa, com um pratarrão de músculo.
Foi uma humilhação e tanto, mas aquela carne saborosa que eu ia desfiando com a mão e polvilhando com sal nunca mais me saiu da lembrança. Convenhamos que o chuchu frio também não.
Daí para apreciar um bom cozido foi um passo.
No outro dia, uma cliente veio pedir um casamento numa fazenda, casamento de quatrocentas pessoas, com cozido. Enrolamos, enrolamos, pensamos nos percalços. A que horas chegar para cozinhar cada carne, cada legume, no seu ponto, sua hora?
Era daquelas mulheres sedutoras que não aceitam ``não" como resposta e acabamos cedendo ao desafio, não sem antes fazer um curso de ``bollito misto".
Fomos ao Fasano, Cá d'Oro, comemos cozidos espanhóis, alemães, portugueses. Descobrimos que nada cozinhável é estranho ao cozido. Tudo, ou quase tudo, é possível.
Em matéria de carnes: músculo, carne de peito, linguiça, chouriço, paio, frango, rabada, tutano, vitela, presunto, ganso em conserva, língua, perdiz, pombos, ossos de suã, cara de boi, zampone, cotecchino.
Em matéria de legumes, o infinito é pouco: cenouras, nabos, alho-poró, salsão, cebola, couve-flor, feijão branco, grão-de-bico, favas, batatas doces e inglesas, milho verde, couve tronchuda, abóboras, quiabos, vagens, maxixes, abobrinhas, bananas-da-terra.
Mas o segredo são os molhos de acompanhamento, que dão um certo ``tchans!" ao cozido.
Sempre me interessei em fazer a Mostarda de Cremona, mas como leva nos ingredientes essência de mostarda (como essência de rosas ou baunilha) e não sei onde encontrá-la, faço com mostarda mesmo.
Cozinho peras, figos, cidra, compro pacotinhos de frutas glaçadas, misturo a uma boa mostarda com um pouco da calda bem rala da pêra e, suprema heresia, junto umas cebolinhas mínimas, de conserva. Fica um agridoce ótimo para acompanhar as carnes defumadas, de porco, mais fortes.
O Molho Verde nada mais é que muita salsinha picada, um pouco de alcaparras, seis boas anchovas, meio alho, vinagre de vinho tinto e azeite, tudo bem misturado na hora de servir.
O Molho de Raiz-Forte não pode faltar. Feito em casa com raiz-forte ralada, facílimo de fazer. Mais fácil ainda é comprar um potinho de boa marca e diluir com um pouco de creme de leite, ao gosto da família.
Servir em dois tachos, um com as carnes umedecidas no caldo, outro com os legumes também umedecidos. Os tachos cobertos com folhas de couve, para segurar o calor e por pura beleza.
Mas o ideal mesmo, para o noviço, é começar com o músculo cozido (a carne do cachorro), três legumes e um molho.
Aos poucos, vai-se aprimorando o gosto, percebendo o gosto rude e simples das coisas cozidas n'água, os sabores misturados, os tempos de cozimento, os ``al dentes". Ah, e para os muito brasileiros, vai bem o caldo sobre a farinha de mandioca, num patriótico pirão.

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