São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Cartas contaminam literatura

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

A carta de amor é a literatura do homem comum. Paixões platônicas, traição, ciúmes, amores proibidos e perversões são alguns dos condimentos que transformam a vida privada numa aventura e sua confissão epistolar em drama, tragédia ou, ao menos, tragicomédia.
Nada mais natural, portanto, que as cartas de amor acabassem penetrando o próprio romance -gênero que substituiu os heróis míticos das antigas epopéias por seres de carne e osso, envolvidos em mazelas mundanas.
Desse encontro entre imaginação literária e ficção cotidiana nasceu uma nova forma narrativa -o romance epistolar- e pelo menos duas obras-primas: "As Relações Perigosas, do francês Choderlos de Laclos, e "Os Sofrimentos do Jovem Werther, do romântico alemão Johann Wolfgang Goethe.
"As Relações Perigosas é uma sucessão de cartas nas quais dois amantes -o visconde de Valmont e a marquesa de Merteuil (vividos por John Malcovitch e Glenn Close, na adaptação de Stephen Frears)- desfilam suas diabólicas estratégias para seduzir, possuir e humilhar publicamente as mulheres decotadas e os nobres empoados da corte francesa do século 18.
Pouco importa; mesmo sendo uma fraude, as declarações de amor das cartas são um primor de retórica sentimental:
"Conhecendo-vos melhor, verifiquei logo que essa fisionomia encantadora, que a princípio foi a única coisa a me impressionar, era o menor de vossos atrativos; vossa alma celestial espantou, seduziu a minha. Admirava a beleza, adorei a virtude. Sem a pretensão de vos conquistar, preocupei-me com vos merecer, escreve o voluptuoso libertino Valmont à casta madame de Tourvel (Michelle Pfeiffer, na versão cinematográfica).
Em Goethe, porém, o tom muda completamente, o cinismo e a impostura dão lugar ao amor sublime e ao martírio:
"Está decidido, Carlota, desejo morrer, e escrevo-te isto serenamente, sem exaltação sentimental, na manhã do dia em que te verei pela última vez. Quando leres esta carta, minha cara, a terra fria já estará cobrindo os restos rígidos deste infeliz, deste homem desassossegado, que nos seus últimos momentos de vida não conhece doçura maior do que falar contigo, escreve Werther a sua amada, pouco antes de sucumbir mortalmente à paixão irrealizada.
Passados os eflúvios do romantismo, porém, até as epístolas amorosas aderem ao materialismo de fins do século 19. A tal ponto que uma das poucas cartas de amor da obra do russo Dostoiévski transforma um pedido de casamento numa cômica barganha:
"A senhora é uma deusa da antiguidade, e eu não sou nada, mas tenho o pressentimento do infinito. (...) A idéia de um casamento poderia parecer ridícula, mas em breve receberei duzentas almas, por intermédio dum misantropo que a senhora despreza, diz o ébrio capitão Lebiádkin, de "Os Demônios, à jovem Liza.
Já na enxuta literatura do século 20, as declarações tornam-se mais breves -mas não menos eloquentes. Em "Sob o Vulcão, do norte-americano Malcolm Lowry (levado à tela por John Huston, com Albert Finney e Jacqueline Bisset), Yvonne se penitencia por ter abandonado o cônsul Geoffrey Firmin através de um cartão postal:
"Amor, por que parti? Por que me deixaste partir? -expressão de outro tema recorrente na literatura epistolar: a culpa pela traição.

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