São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Por que privatizar - 1

EDUARDO GIANNETTI

O que mais surpreende na maré vitoriosa da privatização é o seu caráter universal
Ninguém sabe ao certo como surgiu o termo ``privatização". Segundo o ``Oxford Dictionary of New Words" (1991) -um notável guia reunindo mais de 2.000 palavras e frases que ingressaram na língua inglesa nos últimos anos- foi só a partir dos anos 70 que o termo ``privatizar" e seus correlatos passaram a figurar no vocabulário corrente do inglês. Quanto à origem específica do termo ``privatização", embora o ``New Words" nada afirme, tudo indica que sua primeira aparição impressa ocorreu mesmo -até prova em contrário- nas páginas da revista ``The Economist", no início dos anos 60.
Mas se a terminologia é relativamente nova, a idéia em si chega a ser tão antiga quanto a própria ciência econômica. No livro 5 da ``Riqueza das Nações", por exemplo, Adam Smith faz uma proposta clara e bem-fundamentada de privatização: ``Em todas as grandes monarquias da Europa a venda de terras da coroa produziria uma grande soma de recursos que, se fossem aplicados no pagamento da dívida pública, liberariam a coroa de obrigações financeiras muito superiores a qualquer receita que estas terras jamais lhes trouxeram".
O argumento de Smith, vale notar, não se restringe ao campo das finanças públicas. A idéia de vender ativos que rendem pouco para pagar passivos que custam muito era apenas o lado mais visível e atraente da proposta -uma saída capaz de sensibilizar qualquer governante sufocado por dívidas monstruosas e tolhido por orçamentos estourados. Tão ou mais importante que isso, contudo, e de certo modo reforçando o argumento fiscal, era o ganho de eficiência microeconômica advindo da privatização.
``Quando as terras da coroa se tornarem propriedade privada", sugeria Smith, ``elas irão, em alguns anos, tornar-se mais aperfeiçoadas e melhor cultivadas". Como as terras estatais rendiam pouco e eram malcultivadas, isso representava não só uma grande perda de produção agrícola e alimentos mais caros, mas, indiretamente, um sacrifício de receita tributária para o próprio soberano. Embora poucos se dessem conta disso, a renda oriunda das terras estatais custava mais para os contribuintes do que qualquer outra receita equivalente arrecadada pelo governo.
A baixíssima eficiência produtiva e alocativa dos ativos de propriedade estatal não era gratuita. Por trás dela escondia-se um problema ainda mais sério, ligado à própria estrutura de incentivos e à relação entre propriedade e gestão -a questão do ``principal-agent", tal como ficou conhecida na literatura especializada mais recente de organização industrial- nas atividades empresariais do setor público.
Quando os governantes se metem a fazer comércio ou abrir empresas com recursos públicos, observou Smith, a forma pela qual seus negócios são geridos acaba fazendo com que seja quase impossível que eles sejam bem-sucedidos: ``Os agentes de um príncipe encaram a riqueza do seu patrão como inesgotável; eles são descuidados nos preços pelos quais compram, nos preços pelos quais vendem e nas despesas que incorrem ao transportar seus bens de um lugar para outro. Estes agentes com frequência vivem com a profusão dos príncipes e algumas vezes, apesar desta profusão e graças a um método próprio de maquiar suas contas, adquirem a fortuna dos príncipes".
E, para ilustrar o ponto, ele cita um exemplo extraído da ``História de Florença", de Maquiavel: ``Era assim que, como relata Maquiavel, os agentes de Lorenzo de Medici, um príncipe de não poucas habilidades, conduziam seus negócios. A república de Florença foi diversas vezes obrigada a ter de pagar as dívidas nas quais a extravagância destes agentes acabaram envolvendo o príncipe". Moral da história: o governante florentino desistiu de fazer negócios, desfez-se de suas empresas e decidiu aplicar o dinheiro restante em bens imóveis, menos sujeitos a vicissitudes.
A história do pensamento econômico dá estranhas voltas. Da Florença de Lorenzo de Medici ao Reino Unido de Margaret Thatcher cinco séculos e muita água passaram sob a ponte. Perdidas e até ridicularizadas durante tanto tempo, as lições de Adam Smith foram redescobertas, apreciadas e aprofundadas pela teoria econômica. O motor da transformação não foi qualquer esforço persuasivo ou modismo ideológico, mas a experiência amarga e cumulativa de incontáveis fracassos -frutos do abuso, desleixo e desperdício- na gestão de empreendimentos estatais.
O que mais surpreende na maré vitoriosa da privatização é o seu caráter universal. Estigmatizada a princípio, ela acabou vencendo até mesmo onde menos se esperaria que isso acontecesse. Nos últimos 15 anos, a venda de ativos estatais para o setor privado tornou-se programa de governo e realidade prática em mais de 70 países.
Além da experiência radical dos países recém-saídos do comunismo -há casos em que a opção tomada foi simplesmente doar de graça para a população as ações das estatais-, alguns dos programas mais ambiciosos de privatização vêm sendo implementados por governos liderados por partidos que, até pouco tempo, defendiam exatamente o oposto. É o caso dos socialistas na Espanha, dos trabalhistas na Austrália, da social-democracia escandinava e dos peronistas na Argentina. Nas democracias de todo o mundo, defender a ``reestatização" do que já foi privatizado é sinônimo de suicídio eleitoral.
Por que privatizar? A universalidade da privatização é sintomática, mas não é argumento. O fato de estarem todos fazendo alguma coisa não é razão válida para que se deva também fazer isso. Se todos estiverem indo na direção errada, rumo ao nacional-socialismo, por exemplo, não há qualquer problema -muito pelo contrário- em ``estar na contramão da História". Invocar a autoridade da ``História" para se eximir do trabalho de justificar racionalmente nossas escolhas e preferências normativas, quaisquer que sejam, é um dos piores vícios intelectuais de nossa época.
Os argumentos que sustentam as propostas de privatização e que no entender de muitos -entre os quais me incluo- decidem a partida a seu favor, são basicamente de dois tipos. Existem as evidências empíricas, amplamente favoráveis, geradas a partir das experiências de privatização realizadas em todo o mundo, e existem os argumentos de natureza teórica, esboçados na origem por Adam Smith e, mais tarde, principalmente dos anos 80 para cá, retomados, refinados e formalizados pela teoria econômica.
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.

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