São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Tempo de desindexar

ANTONIO KANDIR
Trinta anos de convivência praticamente ininterrupta com a indexação formal não nos dão o direito de desconhecer suas "manhas e cair mais uma vez em suas velhas armadilhas. Muito menos a nós, congressistas, que teremos de apreciar as medidas de desindexação que o governo deverá enviar até o final de junho, quando se consuma a morte anunciada do IPC-r.
Das muitas "manhas da indexação formal, a principal é insinuar-se sob forma inofensiva, um mecanismo domesticável, supostamente capaz de oferecer proteção ao valor real dos salários e permitir segurança necessária à celebração dos demais contratos da economia, em ambiente de conivência pacífica com taxas de inflação "razoáveis. Foi assim ao início do governo autoritário, quando se criou o instituto da correção monetária, germe da indexação formal, e estabeleceu-se uma lei para arbitrar o reajuste de salários.
Os anos encarregaram-se de mostrar que, sob a pele do cordeiro, havia um lobo dormitando. Despertado ao primeiro "choque exógeno, o "choque do petróleo, o lobo passou a mostrar suas garras. A indexação formal desenvolveu-se, generalizando-se como mecanismo de reprodução automática da inflação passada. Novos e sucessivos "choque exógenos tornaram-na cada vez mais "apertada, com encurtamento progressivo da periodicidade dos reajustes previstos. Assim o país entrou na rota explosiva da hiperinflação, na qual quase mergulhamos, no início de 1990. É por conhecermos bem o funcionamento e as vítimas preferenciais desse drama, que seria imperdoável não aproveitar a oportunidade que temos agora de colocar-lhe, em definitivo, um ponto final.
Para tanto, é fundamental não repetir equívocos do passado. Dentre os mais graves, estão: i) desregulamentar a indexação de alguns contratos apenas; ii) desindexar apenas uma parte dos salários, circunscrevendo a indexação formal às faixas mais baixas; iii) desindexar os salários paulatinamente, começando por alguma fórmula mista de reajuste.
A idéia aparentemente engenhosa da fórmula mista já parece felizmente descartada, por ser de administração complexa e "self-defeating, como o demonstra o destino reservado à política salarial do PAEG, formulada em 1965 e abandonada três anos mais tarde.
Quanto à idéia de manter a indexação para salários até determinada faixa, também como exemplos históricos que a condenam (a exemplo da lei salarial contida no Decreto-Lei 2065, editado ao final de 1983), sente-se no Congresso certa simpatia. A simpatia tem causas louváveis, mas não encontra fundamento. Manter a indexação salarial até determinada faixa ou mantê-la em toda extensão da escala equivale, na prática, a pouco mais ou menos a mesma coisa. Quer porque a maioria da massa salarial permaneceria sob regime de indexação, quer porque, e esse é o problema fundamental, a indexação não deixaria de propagar-se informalmente para os salários maiores, por força da própria estrutura e dinâmica das empresas.
Por fim, a desregulamentação de apenas parte dos contratos, além de politicamente insustentável, não tem consistência macroeconômica alguma, visto que os demais contratos tenderiam a aderir ao indexador oficial remanescente. Deve, portanto, prevalecer desregulamentação plena dos contratos, com proibição, em lei, de cláusulas de reajuste inferiores a um ano, o que não impede as partes de combinarem livremente a adoção de um parâmetro qualquer de correção, tampouco implica eliminação da TR, que não é um indexador, como parâmetro para as relações de débito e crédito.
Em resumo, em matéria de desindexação, como em outras matérias, não existe meio termo. Adotar solução conciliatória, sob quaisquer argumentos, significa bloquear o avanço do processo de estabilização e aumentar os custos, em termos de redução da renda e do emprego, para tentar preservar o que até aqui foi conquistado. Se o argumento for preservar o valor real dos menores salários, é melhor inventar outro. Trinta anos de indexação salarial já não foram o bastante para perceber que fora da estabilidade não há proteção eficaz para os salários?

Antonio Kandir, 42, engenheiro, doutor em Economia, é Deputado Federal (PSDB-SP). Foi Secretário de Política Econômica do Ministério da Economia (1990/1991). É autor, entre outros livros, de "Brasil Real: a Construção da Cidadania, da Moeda e do Desenvolvimento (Klick Editora, 1994) e "Brasil Século 21: Tempo de Decidir (Editora Atlas, 1994).

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