São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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'Darwin era um paranóico'

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Adrian Desmond é o historiador da dupla de autores que fez ``Darwin". Encarregou-se de olhar Darwin no contexto social e político da era vitoriana -feminismo, reformismo, sufragismo- e no curso da história da ciência.
Quanto ao primeiro, formou a imagem de um homem religioso, rico e tímido, quase paranóico em relação a sua posição social, que considerava sua teoria um crime social, um atentado ao mundo cujos privilégios desfrutava.
Já no cientista, Desmond descobriu o antípoda desse homem. Obteve um materialista e relativista ousado, de insaciável curiosidade pela verdade factual, cuja genialidade estava em assimilar e comparar as teorias mais consistentes nos diversos campos científicos.
Desmond é autor de ``The Politics of Evolution", doutor em paleontologia e história da ciência e atualmente pesquisador da University College de Londres. Também escreveu uma biografia de Thomas Huxley, cujo segundo volume deve ser publicado em 1996.

Folha - Qual foi o método adotado pelos srs. para fazer uma biografia tão precisa e íntima, quase como um romance?
Adrian Desmond - Estudamos cerca de 20 anos antes de começar o livro e foram 18 meses escrevendo. Trabalhamos em áreas diferentes. Eu, na história política e social do período; Moore, na pessoal, religiosa e intelectual. Ele olhou Darwin do ponto de vista interior; eu, do exterior.
Depois, costuramos os dois trabalhos da maneira mais justa possível, para fazer um retrato o mais vivo possível.
Folha - O livro é uma biografia pouco convencional. Biografias tendem a ser muito ``objetivas", no mau sentido desta palavra, muito descritivas. Como os srs. fizeram para fugir a isso?
Desmond - Tentamos colocar a vida de Darwin no ângulo da história da ciência e da época vitoriana. Não queríamos que ela fosse convencional mesmo.
E contamos com muitos lançamentos de textos de Darwin em anos recentes, como sua correspondência inédita. Há cinco volumes de cartas de Darwin disponíveis atualmente. Há também a transcrição de seus cadernos. É muita informação.
Folha - Qual a diferença do Darwin que o sr. começou a pesquisar há 20 anos e o que foi parar no livro?
Desmond - Havia uma tendência a enxergar a evolução como uma descoberta individual. Acho que o Darwin que descobrimos é mais dependente das teses científicas da época do que se imagina.
Folha - A era vitoriana também parece um pouco diferente no livro da que temos na cabeça habitualmente. É mais conflitante, rica, curiosa; não é a época bem-comportada e moralista do estereótipo, certo?
Desmond - Certo. Havia uma demanda por democracia social, pelo fim dos privilégios elitistas, em especial da igreja anglicana, que controlava as universidades, mandava em tudo.
Folha - Darwin temia muito a divulgação de suas idéias inovadoras -ocultou-a por 20 anos!- e fugiu ao debate mesmo depois de lançá-la. Ele era uma espécie de paranóico?
Desmond - Sim, sem dúvida. Ele era um cavalheiro rico, que hoje seria quase um milionário, e evolução era uma idéia assustadora para a autoridade político-religiosa da época.
Folha - E ele tinha medo do uso político de suas idéias?
Desmond - Tinha. Ele estava muito assustado. Parecia a ele um crime social, dos graves. A evolução como um assassinato. Darwin era um homem muito inteligente, consciente da teoria que tinha em mãos, mas realmente muito preocupado com sua posição social.
Folha - A geologia foi muito importante na formação de Darwin, foi ela que o inspirou a ver a história natural em mudança permanente. Essa espécie de raciocínio científico em analogia era inédito na época, não?
Desmond - Sim. Aí estava o seu gênio, por assim dizer. Ele juntou geologia, fisiologia e paleontologia até obter uma síntese clara do que o incomodava. Ele era muito bom em relacioná-las.
Folha - Depois de ter escrito o livro, o sr. teve a convicção de que não existe essa qualidade de gênio se a sociedade não é viva, ativa, tomada por debates?
Desmond - Sim, mas é preciso notar que a sociedade vitoriana era bastante dura, injusta, e Darwin quis fugir dela a vida toda.
Folha - Sua visita à floresta tropical era uma maneira de fugir também?
Desmond - Pode ser, mas Darwin era um homem muito esperto, muito sensível, e o que queria ver na floresta tropical era o que depois descreveu como ``um caos de delícia". Aquelas imagens nunca o abandonaram. Ele produziu uma prosa muito bonita, romântica, sobre o que viu e pensou do que viu.
Folha - Ele era muito recluso. Outros cientistas enfrentaram as consequências sociais de sua teoria. Mas o livro mostra que ele acompanhava o debate e se manifestava sobre ele em cartas. Por que nunca foi a público?
Desmond - É o que dissemos: ele era paranóico. Não queria se envolver nesses debates que ele achava que, em termos pessoais, não levavam a nada. Preferia continuar estudando espécies, aprimorando sua teoria. Dizia poupar tempo e energia com isso.
E ele também não queria colocar tanta ideologia na teoria evolucionista. Thomas Huxley, que foi seu buldogue, foi quem colocou essa ideologia. Usou-a para se contrapor a uma elite científica aristocrática e religiosa.
Folha - O sr. diria que foi Huxley quem começou a criar o ``darwinismo social"?
Desmond - Não, porque foi Herbert Spencer quem cunhou a expressão e fez do darwinismo uma filosofia política e moral. Mas é preciso observar que o próprio Darwin era ``darwinista social"; havia uma componente política e moral em suas idéias.
Mas Huxley, que era um homem muito corajoso, ao contrário de Darwin, vinha de uma classe desprivilegiada e tinha interesse em afirmar as idéias de Darwin no contexto social. Eu diria que ele criou o darwinismo. Huxley precisava mais de Darwin do que Darwin de Huxley.
Folha - As pessoas tendem a ver a evolução como uma escala natural que sobe até o homem, como uma progressão. Por quê?
Desmond - Há muito mal-entendido e uma exigência da vaidade que culminam nisso. A imagem que Darwin tinha da evolução era a de um arbusto, uma árvore em expansão, com todas as formas de vida com o potencial de evoluir. Darwin era um relativista.

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